HISTÓRIA DE UMA TRAIÇÃO
A Antônio Luiz Vieira
Em julho de 1945, o
escritor argentino Jorge Luis Borges esteve em Ouro Preto, onde permaneceu por
quase um mês. Seus propósitos - segundo
ele -, não tinha nada a ver com a carta manuscrita de Gunnar Erjord, que “... elucidava
completamente o mistério de Tlön” (Tlön,
Uqbar, Orbis Tertius), e que tinha sido carimbada e postada naquela cidade.
Não
que Ouro Preto ou o Brasil, significasse alguma coisa para ele, que sempre teve
preferência pela América do Norte ou o Oriente em suas narrativas fora da
América Latina. A idéia de retomar o “tema do traidor e do herói” foi que o levou a fazer aquela difícil e penosa
viagem em lugar tão remoto, no coração das Minas Gerais. Ele havia lido sobre a
“inconfidência mineira” na primeira edição da História do Brasil, de Robert Southey, publicada em inglês em
1810 e gostaria de escrever ou inserir,
em uma “História Latino-americana da infâmia” ou em uma outra coletânea, a
história não do desditoso e heróico Alferes, Joaquim José da Silva Xavier, dito
o Tiradentes, mas do execrado Joaquim Silvério do Reis, o traidor. Para ele, o espelho do traidor trazia sempre
a imagem do herói, ainda que somente o espelho soubesse disso.
Mas,
desta vez gostaria de ir ao cenário real e irreal da trama e de conhecer a
antiga Vila Rica onde já estiveram outros estrangeiros insignes, tais como o
inglês Richard Burton, o francês Saint-Hilaire, ambos no século XIX - o
primeiro, aliás, esteve em Meca e seria um dos descobridores da nascente do
Nilo. Também, um amigo português, lhe havia falado de um manuscrito do Conde Assumar, que governou
Minas por volta de 1720 e que, ali, “A
terra parece que evapora tumultos; a água exala motins; o ouro toca desaforos; destilam
liberdade os ares; vomitam insolências as nuvens; influem desordens os astros;
o clima é tumba da paz, o berço da rebelião”.
Borges
queria sentir o cheiro da “Potosí brasileira”, onde tanta traição e infâmia
haviam escrito com ouro, fogo e sangue a história daquela cidade magnífica e espectral.
E o cenário da que poderia ter sido a primeira independência brasileira, feita
de fato por brasileiros, era propício para uma narrativa onde a figura, não do herói Joaquim José - cuja
cabeça havia sido mostrada em poste de ignomínia na praça central até que o
tempo a consumisse - mas do traidor Joaquim Silvério, cuja memória se encontrava submersa em brumas, as mesmas
brumas que naquela época do ano eram tão densas e viscosas que podiam ser
palpáveis. As brumas que faziam desaparecer os casarios, os incontáveis
campanários, as escarpas talcosas dos arredores e as efígies de homens e
animais, ainda que fosse dia. Sim, seu
interesse era pelo obscuro português, mas não queria fazer um relato histórico
do delator, mesmo porque isso seria quase que impossível por falta de
evidências e fontes escritas, pois no Brasil, eles esquecem até mesmo os
heróis, quanto mais os traidores.
Entretanto, ele queria ser o mais plausível com relação aos verdadeiros motivos
da traição de Silvério dos Reis, já que achava pouco provável que ele tenha
feito sua delação naquele infausto 1789, apenas para se livrar de dívidas do
tempo em que ele era contratador dos direitos de entradas na Capitania de
Minas. Apesar de que a delação foi, digamos assim, regiamente compensada e o “Judas”
teve o perdão das dívidas e saiu ileso, no entanto teve que se mudar de Minas
Gerais e acabou tendo que exilar-se no nordeste brasileiro, contudo, continuou
sob a condição de “fiel vassalo”, inclusive com mais de um sobrenome:
Montenegro ou Leiria (que até então não usava nunca).
Para
Borges, o motivo da traição era de natureza mais simples e delicada: era uma
traição semântica. Ou seja, para os
mineiros Silvério dos Reis era um traidor que abortou a república brasileira.
Para dos Reis, os brasileiros é que cometiam “o crime de lesa majestade”, já
que eram colonos e deviam fidelidade à rainha Maria I, de Portugal. O
significado do traidor e do herói, portanto, não passaria de pontos de vistas e
dependeria do enunciador. Se os “inconfidentes”, à maneira dos americanos das
13 colônias, se sentiam lesados, eles
também deviam conjurar e se libertar,
era esse o espírito do tempo.
No
século XVII, outro traidor, Domingos Fernandes Calabar, natural de Porto Calvo, Alagoas, também faria opção e trairia seus conterrâneos. Só
que com um detalhe, era brasileiro e se opôs aos brasileiros, ou melhor, aos
portugueses-brasileiros (ou luso-brasileiros) em defesa de outros
colonizadores, os holandeses. Este episódio, também havia interessado a Borges,
sobretudo porque nesta traição, quem foi enforcado não foram os heróis que
lutavam contra outros colonizadores, mas o traidor que lutava a favor da colonização holandesa. E, diga-se
de passagem, se existisse algum tipo de colonização boa, a dos holandeses
seguramente, foi considerada melhor para o mulato Calabar.
Borges,
dizem, ouviu depoimentos no Hotel
Tóffolo. Neste mesmo hotel, de onde podia avistar sobressaltado e
irrequieto o portentoso prédio de “Casa dos Contos” onde o poeta Cláudio Manoel
da Costa foi encontrado morto no mesmo ano da delação, ele pode concluir
perplexo e frustrado, que se ele não
fosse embora rapidamente para Buenos Aires, era ele que seria enforcado, já que
a História já havia acontecido e mais, já estava escrita e que Joaquim Silvério
dos Reis tinha feito a delação simplesmente para se ver livre de suas dívidas e
receber favores da coroa portuguesa. E que ali, na mesma rua que tinha o nome
do herói enforcado, Tiradentes, era inconcebível, outra história, com outro
desfecho, ainda que ficcional. Ali,
ouvindo o dobrar dos sinos, o herói seria sempre o herói e o traidor seria
sempre o traidor e não valia a pena ser
lembrado, quanto mais ser questionado e ser enredo de alguma
narrativa...
Borges,
nunca mais voltou ao Brasil. Nunca mais
tocou no assunto e suas anotações, seus manuscritos inéditos sobre os
“inconfidentes”, foram lacrados em um envelope de pergaminho e postado ali
mesmo para um destinatário ignorado numa tarde brumosa e fria. A névoa era tão
espessa que Borges ao retornar para o hotel teve a impressão que se encontrava
no Século XVIII e a qualquer momento surgiria um oficial da tropa paga do
regimento de Vila Rica e o levaria preso por conspirar contra a História do
Brasil português...
José Eduardo de Oliveira – Patos de Minas
escrito em 1993 -
Uberaba - revisto em 1999 - Patos de Minas – Enviado para o poeta Romério
Rômulo em Ouro Preto – sem respostas.
28/03/2002
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