ALEIJADINHO: HISTÓRIA, DOENÇAS E DIAGNÓSTICOS*
José Eduardo de Oliveira**
Para José Arnaldo Coêlho de Aguiar Lima, in memoriam
Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho continua,
ainda hoje, nos albores do século XXI, com uma história prenhe de mistérios e
fascínios. Para Affonso Ávila o “papel exponencial desse artista mineiro, desse
artista mulato, nos lances de evolução de nossa arquitetura, de nossa talha, de
nossa escultura”, reafirma-o como “o
artista-síntese”, que assimilou heranças formais e lições de técnica da arte
luso-brasileira, repensando com elas talvez a própria soma de tradições da arte
ocidental e cristã.
Para grande parte de seus biógrafos ou estudiosos de
suas obras, Aleijadinho teria nascido e sido batizado há exatos 283 anos, “Aos vinte e nove dias do mês de agosto de mil
setecentos e trinta.” na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição da
atual cidade de Ouro Preto. Outros, acreditam, de acordo com o assento de seu
óbito, da mesma Matriz, lavrado, “Aos
dezoito de Novembro de mil oitocentos e quatorze”, onde foi escrito que Antônio Francisco Lisboa
teria falecido aos setenta e seis anos, e portanto deveria ter nascido em 1738
e não em 1730. Fiado nestes dois
documentos, Rodrigo José Ferreira Bretas escreveu que Antonio Francisco Lisboa
nasceu a 29 de agosto de 1730 e
era filho de Manuel Francisco da Costa Lisboa e de sua escrava Isabel e faleceu no dia 18 de novembro de 1814 aos 84 anos. Dois problemas já emergem desta biografia. O Primeiro é que o
suposto pai do escultor chamava-se Manuel Francisco Lisboa, sem o “da
Costa” e o segundo é que o óbito fala que ele faleceu com 76 anos.
Além das questões relacionadas às suas obras, existe
uma outra provavelmente a que jamais será elucidada: a sua doença. A que o fez atravessar
mais de dois séculos com o apelido de “Aleijadinho”.
BIOGRAFIA – O mineiro Rodrigo José
Ferreira Bretas, foi o autor da primeira biografia completa do Aleijadinho, com
o título, “Traços biográficos relativos ao finado Antônio Francisco Lisboa
distinto escultor mineiro, mais conhecido pelo apelido de Aleijadinho.”, publicada
no jornal ouro-pretano Correio Oficial de Minas, nos dias 19 e 23 de agosto de
1858. Bretas dentre outras fontes utilizadas para escrever a biografia do
artista, conversou com sua nora Joana que ainda morava em Ouro Preto e falou
dos últimos momentos do sogro.
Dessa biografia, de documentos de confrarias e
irmandades religiosas onde Aleijadinho executou suas obras e de depoimentos de
viajantes estrangeiros (Eschwege, Luccock,
Saint-Hilaire, Castelnau, Burton etc.) que vieram para as Minas durante o século XIX é que
a história do Aleijadinho foi sendo escrita e reescrita desde então.
BIBLIOGRAFIA – Após a biografia de
Bretas, poucas referências apareceram sobre o artista até o início do século XX,
quando através de uma série de eventos fortuitos que se entrelaçaram o Barroco
Mineiro e seus artistas serão de certa forma exumados do esquecimento.
Em Minas, sobretudo aqui, o principal artista a ser
pesquisado, estudado, valorizado e mitificado será o Aleijadinho. Por que não?
Qual outro entalhou os Passos (1796-9) e esculpiu os Profetas (1800-5) de
Congonhas? Entretanto, Judith Martins, em seu “Dicionário de artistas e
artífices dos séculos XVIII e XIX em Minas”, lista 2.349 artistas mineiros.
Imaginem-se quantos não foram no nordeste, Rio de Janeiro, São Paulo e no
restante do País nestes mesmos séculos e nos dois antecedentes. A mesma Judith Martins, em 1939,
publicou os “Apontamentos para a bibliografia de Antônio Francisco Lisboa”,
onde arrola 100 referências bibliográficas (livros e artigos) sobre o
Aleijadinho. Sendo três delas específicas sobre suas doenças.
Em 1970, Hélio Gravatá publicou
a “Bibliografia sobre Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho”, onde computou
1.140 referências bibliográficas (livros, artigos, opúsculos etc.) sobre o
Aleijadinho. Sendo 31 delas específicas sobre suas doenças. E hoje, 43 anos
depois?
OBRAS – Parte dessa tinta gasta
sobre o escultor-entalhador-arquiteto Antônio Francisco Lisboa foi utilizada
para tentar desmitificar o artista ou pelo menos não creditar a ele todas as
obras que são atribuídas ao seu talento.
Para os especialistas ou
não, as obras do Aleijadinho foram executadas em cedro e esteatita
principalmente nas seguintes cidades coloniais mineiras durante o ciclo do
barroco/rococó: Ouro
Preto, Sabará, Barão de Cocais, Mariana,
São João del-Rei, Tiradentes e Congonhas. Muita tinta ainda é gasta para certificar que todas as
obras atribuídas foram executadas por ele ou pela sua oficina ou ateliê.
A
pesquisadora Myriam A. R. Oliveira, enumerou em 2002, 128 esculturas devocionais em madeira, localizadas em cidades
históricas de Minas e em coleções particulares.
De
acordo com Márcio Jardim, também estudioso de sua obra, “De
uma relação com 141 obras estabelecidas pelo IPHAN em 1951, passou-se a 238 em 1977 e a 425 em
2006.” Em 2011, o mesmo Jardim, afirmou
que é possível enumerar 486 obras do Aleijadinho, distribuídas em:
escultura (374), entalhamento (37), escultura ornamental (25), arquitetura
(25), marcenaria (24) e sem especificação (1)
localizadas em cidades históricas de Minas e em Museus de São Paulo e em
coleções particulares.
Documentadas ou não, como afirmar então a autoria
das obras? Infelizmente, Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, mesmo sendo
um profissional competente, um dos maiores de seu tempo e sempre requisitado e
valorizado pela sua criatividade e originalidade, em sua época não passava de
um artesão. Quer dizer, um oficial mecânico, que na sociedade estamental do
Antigo Regime, transplantada para a Colônia, ele seria considerado um
trabalhador manual. Ele e os cirurgiões, diga-se de passagem, que ao contrário
dos físicos ou médicos licenciados gozavam de um status mais elevado.
Assim, mesmo com a documentação encontrada nas
sacristias e consistórios das irmandades e confrarias religiosas das igrejas que
eram os principais contratantes dos serviços dos “artistas”, muita coisa se
perdeu ou não esclarecem a autoria. E
quando a documentação não existe, os especialistas apelam para o estilo de cada
artista para atribuir a autoria. Ora, se existe uma obra documentada e
encontram outra sem documentação, mas que possuem os mesmos estilemas ou traços
estilísticos dele ou de sua oficina a atribuição é feita.
DOENÇA – Foi através da biografia de
Rodrigo José Ferreira Bretas e das doenças apresentadas ali, de depoimentos
contemporâneos ao Aleijadinho e dos depoimentos dos viajantes estrangeiros é
que se basearam os interessados em estudar e diagnosticar as doenças e “de que
morreu o Aleijadinho”.
Bretas em seu “relatório”, aponta que “de 1777 em
diante as moléstias provindas talvez em grande parte de excessos venéreo e do
mal epidêmico Zamparina que fazia
deformidades e paralisias ou humor gálico
com o escorbútico, perdendo todos os
dedos dos pés andando só de joelho, as mãos atrofiaram-se restando apenas os
dedos polegares e índices, às vezes cortados por ele mesmo. As pálpebras
incharam-se, a boca entortou-se perdendo quase todos os dentes. Além disso
consumiu grandes doses de cardina
agravando seu estado.” E também, que precisava “atar-lhes os ferros para obrar”, ou seja, alguém precisava amarrar
ferramentas para que ele pudesse esculpir.
Paradoxalmente, no século XX, um dos primeiros a
propor que estudassem as doenças do Aleijadinho, não foi um médico, mas um
poeta mineiro, Djalma Andrade que em 1923, escreveu em um jornal do Rio de
Janeiro o artigo: “Os diagnósticos retrospectivos - de que morreu o ‘Aleijadinho’?”.
Depois dele veio o médico, René Laclette em 1929, com o primeiro estudo de um médico
sobre a doença do Aleijadinho: “O Aleijadinho e suas doenças”, depois
transformado em livro. Seu diagnóstico, como o de todos, obviamente baseados
principalmente em Bretas, será: “Lepra
nervosa e siringomielia, pendendo para o primeiro, apoiados nos fundamentos
neurológicos.” Desde então inúmeros
artigos e livros foram publicados no Brasil e no exterior, com destaque para
alguns que foram editados como livros.
Despois
de Laclette, o médico Alípio Corrêa
Netto publicou em 1963 o livro, “A doença do Aleijadinho”, diagnosticando-a
como Tromboangeíte obliterante. Em
1970, seria publicado o estudo de Tancredo Furtado, “O Aleijadinho e a
medicina”, em que diagnostica que Aleijadinho teve Lepra nervosa.
Em 1998, foi publicado o que considero o mais
importante e interessante livro sobre as doenças do Aleijadinho desde o estudo
de Bretas: “Doenças e mistérios do Aleijadinho” (título que recebeu na segunda
edição) de Geraldo Barroso de Carvalho. Este médico mineiro acredita que o
Aleijadinho “foi vítima de quatro doenças graves: AVC (acidente vascular cerebral), Poliomielite, Hanseníase e Porfiria Cutânea Tarda.”
Além disso, Carvalho esteve presente na última exumação dos restos do
artista em 1998, onde pelo menos foi constata a doença Porfiria Cutânea Tarda.
Talvez o último livro publicado sobre as doenças do
Aleijadinho tenha sido o do médico Geraldo Guimarães da Gama, “Os mistérios na
vida do aleijadinho”, em 2004, onde aponta dois diagnósticos: “Sua história clínica divide-se em duas fases
distintas: a primeira, em 1777, teria determinado o aleijão (“acidente de
trabalho”); a segunda, inicia-se aos 82 anos, e termina em 1814, hemiplégico (AVC).”
E René Laclette nos adverte: “Se, no caso concreto, podem aparecer dúvidas
com o doente à vista, isto se faz sentir com maior razão num diagnóstico
retrospectivo na ausência de um relatório feito por médico.”
Esta história ainda não terminou, e no próximo ano,
2014, tendo por base seu óbito, certamente novos estudos irão exumar novamente
depois de duzentos anos, a papelada, as obras e os ossos de Antônio Francisco
Lisboa, o Aleijadinho que ainda ronda insepulto no purgatório da genialidade em
nome da arte religiosa mineira.
* O presente texto é um resumo da aula
ministrada no Centro de Memória da Medicina “Dr. Adélio Maciel” a convite da
Associação Médica Regional de Patos de Minas no dia 25 de junho de 2013.
**
Professor de História, Licenciado em História pela UFOP (1986)
Publicado
na Folha Patense, ano 21, nº 1061, 24.08.2013, p. 21, Patos de Minas-MG
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