quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

ALEIJADINHO: HISTÓRIA, DOENÇAS E DIAGNÓSTICOS



 ALEIJADINHO: HISTÓRIA, DOENÇAS E DIAGNÓSTICOS*

José Eduardo de Oliveira**

Para José Arnaldo Coêlho de Aguiar Lima, in memoriam

Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho continua, ainda hoje, nos albores do século XXI, com uma história prenhe de mistérios e fascínios. Para Affonso Ávila o “papel exponencial desse artista mineiro, desse artista mulato, nos lances de evolução de nossa arquitetura, de nossa talha, de nossa escultura”,  reafirma-o como “o artista-síntese”, que assimilou heranças formais e lições de técnica da arte luso-brasileira, repensando com elas talvez a própria soma de tradições da arte ocidental e cristã.
Para grande parte de seus biógrafos ou estudiosos de suas obras, Aleijadinho teria nascido e sido batizado há exatos 283 anos, “Aos vinte e nove dias do mês de agosto de mil setecentos e trinta.” na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição da atual cidade de Ouro Preto. Outros, acreditam, de acordo com o assento de seu óbito, da mesma Matriz, lavrado,  Aos dezoito de Novembro de mil oitocentos e quatorze”,  onde foi escrito que Antônio Francisco Lisboa teria falecido aos setenta e seis anos, e portanto deveria ter nascido em 1738 e não em 1730. Fiado nestes dois documentos,  Rodrigo José Ferreira Bretas escreveu que Antonio Francisco Lisboa nasceu a 29 de agosto de 1730 e era filho  de Manuel Francisco da Costa Lisboa e de sua escrava Isabel e faleceu no dia 18 de novembro de 1814 aos 84 anos. Dois problemas já emergem desta biografia. O Primeiro é que o suposto pai do escultor chamava-se Manuel Francisco Lisboa,  sem o “da Costa” e o segundo é que o óbito fala que ele faleceu com 76 anos.
Além das questões relacionadas às suas obras, existe uma outra provavelmente a que jamais será elucidada: a sua doença. A que o fez atravessar mais de dois séculos com o apelido de “Aleijadinho”.
BIOGRAFIA – O mineiro Rodrigo José Ferreira Bretas, foi o autor da primeira biografia completa do Aleijadinho, com o título, “Traços biográficos relativos ao finado Antônio Francisco Lisboa distinto escultor mineiro, mais conhecido pelo apelido de Aleijadinho.”, publicada no jornal ouro-pretano Correio Oficial de Minas, nos dias 19 e 23 de agosto de 1858. Bretas dentre outras fontes utilizadas para escrever a biografia do artista, conversou com sua nora Joana que ainda morava em Ouro Preto e falou dos últimos momentos do sogro.
Dessa biografia, de documentos de confrarias e irmandades religiosas onde Aleijadinho executou suas obras e de depoimentos de viajantes estrangeiros (Eschwege, Luccock, Saint-Hilaire, Castelnau, Burton etc.) que vieram para as Minas durante o século XIX é que a história do Aleijadinho foi sendo escrita e reescrita desde então.
BIBLIOGRAFIA – Após a biografia de Bretas, poucas referências apareceram sobre o artista até o início do século XX, quando através de uma série de eventos fortuitos que se entrelaçaram o Barroco Mineiro e seus artistas serão de certa forma exumados do esquecimento.
Em Minas, sobretudo aqui, o principal artista a ser pesquisado, estudado, valorizado e mitificado será o Aleijadinho. Por que não? Qual outro entalhou os Passos (1796-9) e esculpiu os Profetas (1800-5) de Congonhas? Entretanto, Judith Martins, em seu Dicionário de artistas e artífices dos séculos XVIII e XIX em Minas”, lista 2.349  artistas mineiros. Imaginem-se quantos não foram no nordeste, Rio de Janeiro, São Paulo e no restante do País nestes mesmos séculos e nos dois antecedentes.  A mesma Judith Martins, em 1939, publicou os “Apontamentos para a bibliografia de Antônio Francisco Lisboa”, onde arrola 100 referências bibliográficas (livros e artigos) sobre o Aleijadinho. Sendo três delas específicas sobre suas doenças.
Em 1970, Hélio Gravatá publicou a “Bibliografia sobre Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho”, onde computou 1.140 referências bibliográficas (livros, artigos, opúsculos etc.) sobre o Aleijadinho. Sendo 31 delas específicas sobre suas doenças. E hoje, 43 anos depois?
OBRAS – Parte dessa tinta gasta sobre o escultor-entalhador-arquiteto Antônio Francisco Lisboa foi utilizada para tentar desmitificar o artista ou pelo menos não creditar a ele todas as obras que são atribuídas ao seu talento.
Para os especialistas ou não, as obras do Aleijadinho foram executadas em cedro e esteatita principalmente nas seguintes cidades coloniais mineiras durante o ciclo do barroco/rococó: Ouro Preto, Sabará, Barão de Cocais, Mariana,  São João del-Rei, Tiradentes e Congonhas. Muita tinta  ainda é gasta para certificar que todas as obras atribuídas foram executadas por ele ou pela sua oficina ou ateliê.
A pesquisadora Myriam A. R. Oliveira, enumerou em 2002, 128 esculturas devocionais em madeira, localizadas em cidades históricas de Minas e em coleções particulares.
De acordo com Márcio Jardim, também estudioso de sua obra,  De uma relação com 141 obras estabelecidas pelo IPHAN em  1951, passou-se a 238 em 1977 e a 425 em 2006.”   Em 2011, o mesmo Jardim, afirmou que é possível enumerar 486 obras do Aleijadinho, distribuídas em: escultura (374), entalhamento (37), escultura ornamental (25), arquitetura (25), marcenaria (24) e sem especificação (1)  localizadas em cidades históricas de Minas e em Museus de São Paulo e em coleções particulares.
Documentadas ou não, como afirmar então a autoria das obras? Infelizmente, Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, mesmo sendo um profissional competente, um dos maiores de seu tempo e sempre requisitado e valorizado pela sua criatividade e originalidade, em sua época não passava de um artesão. Quer dizer, um oficial mecânico, que na sociedade estamental do Antigo Regime, transplantada para a Colônia, ele seria considerado um trabalhador manual. Ele e os cirurgiões, diga-se de passagem, que ao contrário dos físicos ou médicos licenciados gozavam de um status mais elevado.
Assim, mesmo com a documentação encontrada nas sacristias e consistórios das irmandades e confrarias religiosas das igrejas que eram os principais contratantes dos serviços dos “artistas”, muita coisa se perdeu ou não esclarecem a autoria.  E quando a documentação não existe, os especialistas apelam para o estilo de cada artista para atribuir a autoria. Ora, se existe uma obra documentada e encontram outra sem documentação, mas que possuem os mesmos estilemas ou traços estilísticos dele ou de sua oficina a atribuição é feita.
DOENÇA – Foi através da biografia de Rodrigo José Ferreira Bretas e das doenças apresentadas ali, de depoimentos contemporâneos ao Aleijadinho e dos depoimentos dos viajantes estrangeiros é que se basearam os interessados em estudar e diagnosticar as doenças e “de que morreu o Aleijadinho”.
Bretas em seu “relatório”, aponta que “de 1777 em diante as moléstias provindas talvez em grande parte de excessos venéreo e do mal epidêmico Zamparina que fazia deformidades e paralisias ou humor gálico com o escorbútico, perdendo todos os dedos dos pés andando só de joelho, as mãos atrofiaram-se restando apenas os dedos polegares e índices, às vezes cortados por ele mesmo. As pálpebras incharam-se, a boca entortou-se perdendo quase todos os dentes. Além disso consumiu grandes doses de cardina agravando seu estado.” E também, que precisava “atar-lhes os ferros para obrar”, ou seja, alguém precisava amarrar ferramentas para que ele pudesse esculpir.
Paradoxalmente, no século XX, um dos primeiros a propor que estudassem as doenças do Aleijadinho, não foi um médico, mas um poeta mineiro, Djalma Andrade que em 1923, escreveu em um jornal do Rio de Janeiro o artigo: “Os diagnósticos retrospectivos - de que morreu o ‘Aleijadinho’?”. Depois dele veio o médico, René Laclette em 1929, com o primeiro estudo de um médico sobre a doença do Aleijadinho: “O Aleijadinho e suas doenças”, depois transformado em livro. Seu diagnóstico, como o de todos, obviamente baseados principalmente em Bretas, será: “Lepra nervosa e siringomielia, pendendo para o primeiro, apoiados nos fundamentos neurológicos.” Desde então inúmeros artigos e livros foram publicados no Brasil e no exterior, com destaque para alguns que foram editados como livros.
Despois de Laclette, o médico Alípio Corrêa Netto publicou em 1963 o livro, “A doença do Aleijadinho”, diagnosticando-a como Tromboangeíte obliterante. Em 1970, seria publicado o estudo de Tancredo Furtado, “O Aleijadinho e a medicina”, em que diagnostica que Aleijadinho teve Lepra nervosa.
Em 1998, foi publicado o que considero o mais importante e interessante livro sobre as doenças do Aleijadinho desde o estudo de Bretas: “Doenças e mistérios do Aleijadinho” (título que recebeu na segunda edição) de Geraldo Barroso de Carvalho. Este médico mineiro acredita que o Aleijadinho “foi vítima de quatro doenças graves: AVC (acidente vascular cerebral), Poliomielite, Hanseníase e Porfiria Cutânea Tarda.”  Além disso, Carvalho esteve presente na última exumação dos restos do artista em 1998, onde pelo menos foi constata a doença Porfiria Cutânea Tarda.
Talvez o último livro publicado sobre as doenças do Aleijadinho tenha sido o do médico Geraldo Guimarães da Gama, “Os mistérios na vida do aleijadinho”, em 2004, onde aponta dois diagnósticos:  “Sua história clínica divide-se em duas fases distintas: a primeira, em 1777, teria determinado o aleijão (“acidente de trabalho”); a segunda, inicia-se aos 82 anos, e termina em 1814, hemiplégico (AVC).
E René Laclette nos adverte:  “Se, no caso concreto, podem aparecer dúvidas com o doente à vista, isto se faz sentir com maior razão num diagnóstico retrospectivo na ausência de um relatório feito por médico.”
Esta história ainda não terminou, e no próximo ano, 2014, tendo por base seu óbito, certamente novos estudos irão exumar novamente depois de duzentos anos, a papelada, as obras e os ossos de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho que ainda ronda insepulto no purgatório da genialidade em nome da arte religiosa mineira.

*  O presente texto é um resumo da aula ministrada no Centro de Memória da Medicina “Dr. Adélio Maciel” a convite da Associação Médica Regional de Patos de Minas no dia 25 de junho de 2013.
** Professor de História, Licenciado em História pela UFOP (1986)

Publicado na Folha Patense, ano 21, nº 1061, 24.08.2013, p. 21, Patos de Minas-MG

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