quarta-feira, 10 de abril de 2019

JOSÉ ARNALDO COÊLHO DE AGUIAR LIMA, TESTAMENTO PARA ATAÍDE






José Eduardo de Oliveira-Tôca
















JOSÉ ARNALDO COÊLHO DE AGUIAR LIMA,
TESTAMENTO PARA ATAÍDE
2014 - 2018









INTROITO ONÍRICO/ETÍLICO


Cara, ainda estou atordoado com a morte do Zé Arnaldo. Estava no Bar das Coxinhas (quando ele ainda era na Rua Direita, em cuja placa estava estampado “Bar Barroco” e ainda consta este apodo lá na Barra...) em Ouro Preto, quando a filha da Marisa me contou, acabei de encher os cornos e no outro dia estive em Mariana, não encontrei a Keka e aí fui para o Rancho rebater e prantear, não necessariamente nesta ordem elíptica a mesma da S. Pedro dos Clérigos de Mariana. Agosto é mesmo uma desgraça nua, por isso nasci nisso. Eu também quero morrer em agosto...menos de desgosto...mas de porre e se possível em Mariana ou Ouro Preto e em cima de uma mulher com as raças todas misturadas, quero morrer emaranhado em uma mulher barroca-parda, arfante como a morte e cheirosa como o inferno e a puta que o pariu...babando. Zé, até breve--- Sete patrimônios de Mariana: Ataíde, a Sé, a São Francisco, a Casa de Câmara e Cadeia, a Rosário, o Ribeirão do Carmo e o Zé Arnaldo... Mariana sem Zé Arnaldo desertificou-se (apesar de continuar bela e cruel).... Ele me ensinou que a palavra barroco vem do bar-que-é-o-oco da vida---quem o conheceu viveu e vive a fragrância da curiosidade pela nossa cultura setecentista, oitocentista, nas pedras, na esteatita, no cedro e no barulho das asas angelicais nos templos povoados de fantasmas e a poeira das eras pias de antanho---o velho Guimarães Rosa escreveu que "a gente morre para provar que viveu" e o Zé Arnaldo viveu e fez os “cabeças de mogangas”, como eu, que eram seus alunos também experimentarem a história da arte e a vida em Mariana, Ouro Preto, Catas Altas do Mato Dentro ...o sertão, os peraus da noite barroca que agora virou noite profunda demais. “Evoé Baco!” (Bandeira que o diga)  Ele era o José, o Arnaldo, o Coêlho, o Aguiar e o Lima, quando entrava em sala de aula, quando estava no boteco e quando estava nas ruas “milenares” do Arraial do Ribeirão de Nossa Senhora do Carmo e nas capelas e “catedrais imensas” das Minas Gerais... Zé, dê um abraço forte no Alphonsus de Guimaraens e na Ismália, no Lázaro da Filosofia, no Athayde, no Dom Oscar, no Conde de Assumar,  no Bitão etc....a morte de José Arnaldo no dia 10/08/13 foi a maior perda desde Lázaro. Ele foi o último grande mestre e amigo daqueles dias insanos e fecundos. Iniciou-me de fato no barroco marianense, ouro-pretano, brasileiro e mundial, me mostrou o vilipendiado Bazin, o Hauser e a inacabada de Catas Altas. Prestei minhas homenagens a ele no Rancho em Mariana e no Bar das Coxinhas de Ouro Preto e minha memória se misturou à corrubiana da madrugada e aos espectros de Ataíde e Aleijadinho e o Alferes insano e febril como nós. E apesar de não estar sozinho. E tudo ficou tarde ainda que tardia. (escrito alguns dias depois daquele agosto quando o barulho das teclas se misturaram com o barulho dos copos.)



O FIM DA HISTÓRIA, SÓ LADEIRAS SEM DESCIDAS. OU NÃO?

Mas agora começando pelo fim. Foi mais ou menos assim: Numa daquelas viagens que sempre faço como guia turístico de alunos e professoras de Patos de Minas, mais pela desculpa de voltar a Ouro Preto e Mariana do que qualquer outra coisa, aonde eu nunca vinha com eles e também nunca voltava, e ficava para aproveitar mais a viagem, fui parar como sempre no Bar Barroco (o insólito Bar das Coxinhas que frequento desde 1982).  E assim no dia 15 de agosto de 2013 eu já me encontrava em Ouro Preto, preparando a vinda de alguns estudantes e de noite fui para aquele bar para procurar ou espantar os meus fantasmas (que não são poucos) e encher a cornucópia. E lá, depois de não sei quantas e a que horas e já falando pelos cotovelos acabei por conversar com um jovem casal ali no meio daquela confusão toda.  A menina dissera que a mãe dela também tinha estudado História no ICHS (Instituto de Ciências Humanas e Sociais da UFOP). Perguntei quem era ela e a resposta foi: Marisa!  Então eu disse que conheci a mãe dela e que fomos contemporâneos no curso e perguntei como ela estava e onde estava. A resposta foi que ela tinha ido em uma missa de sétimo dia de um professor do ICHS. Perguntei quem era e a resposta foi como um grito no meio da noite, um grito dolente: “O ZÉ ARNALDO!” O álcool evaporou-se e a noite ficou mais escura, fria e ameaçadoramente interminável.
No dia seguinte fui para Mariana, estive no ICHS, encontrei-me com o Toninho (Antônio Calixto, se não me engano), funcionário do Instituto desde a minha época, conversamos sobre o Zé Arnaldo, lamentamos a precocidade de sua morte e muitas outras coisas. E ainda fotografei em uma das paredes um “Convite de Missa de 7º dia”. Depois fui até a casa onde moravam ele e Josanne Guerra Simões, a Keka do Zé Arnaldo, eterna musa, amante e esposa. Não havia ninguém!
Desolado só achei uma saída, fui para o Rancho, o restaurante onde Zé Arnaldo às vezes bebia uns uísques e se encontrava com seus amigos. Queria ver se encontrava algum amigo comum. Troquei uma ou duas palavras com o dono do estabelecimento. Bebi alguma coisa e vi, sobre o balcão protegendo algumas garrafas de vinho, como um anjo protetor o seu chapéu panamá. Eu sabia que ele frequentava aquele bar/restaurante, mas nunca tive o prazer de encontrá-lo lá, como já havia encontrado e bebido com o Professor José Sebastião Maia e outros gaveteiros do Paraguay, e compartilhar de sua companhia e sua imensa generosidade. Nunca mais. Despedi-me dele silenciosamente como um anjo que ouve a “Ave Maria”.  E antes de retornar para Ouro Preto ainda encontrei-me com o José João, o JJ, que tinha sido dono da pousada onde morei, depois ele vendeu e se mudou para Passagem de Mariana onde mora até hoje, e disse ter procurado meu telefone para comunicar-me em Patos de Minas o que havia acontecido no dia 10 de agosto. Depois procurei algum jornal que trouxesse alguma coisa sobre o Zé e acabei encontrando, o “Ponto Final” (ponto final mesmo!), que na página 7 estampava em negrito: “Morre professor da UFOP”, uma despedida de seu amigo Adalgimar Gomes. E na mesma página, um poema da nossa querida Hebe Rola, “No céu de Athayde”, que transcrevo:
“Zé Arnaldo/Plantou-se memória/Fertilizou-se pólen/Floriu-se primavera/Pulverizou-se luz/Nas mentes/E corações gaveteiros/Excursionou/História da Arte/Cantou nos coros das litanias/Para a Virgem do Carmo/E São Francisco de Assis/Perpetuou-se saudade/Solidificou-se em brumas/Misturou-se com os anjos/e arcanjos de Aleijadinho/Fez-se revoada/E voou célere/Para a policromia/Do céu de Athayde/Que é isso, Zé! - Hebe Rolla, Professora e amiga.”
Eu queria ter ido à Missa de 7º dia, queria rever amigos, ex-professores, ex-colegas e recordar José Arnaldo...e isso poderia ter acontecido. Maldita máquina fotográfica ela grava por nós, olha por nós, lê por nós. Mas não roga por nós! Explico: No ICHS, fotografei o convite da missa, mas não li. Se tivesse lido eu teria ido à outra missa que aconteceu, mesmo que não fosse rezar... Aliás, nas Minas Setecentistas era costume celebrar inúmeras missas pela alma. Para o Zé foram duas missas de 7º dia e eu não sabia por que não li o convite: “Keka e família agradecem as inúmeras manifestações de pesar, solidariedade e carinho recebidas por ocasião de seu falecimento e convidam para as missas que serão realizadas: 15/08/2013 – Capela do ICHS às 17h. 16/08/2013 – Sé de Mariana às 19h.” Só fui ler isso quando já estava em Patos de Minas.



O INÍCIO DA HISTÓRIA, OURO PRETO VIA BELO HORIZONTE RUMO A MARIANA


Conheci José Arnaldo antes que ele fosse meu professor de História da Arte em Mariana, como numa
fotografia. Sem conhecê-lo.
Em Belo Horizonte, de 28 de janeiro de 1980 a 1º de fevereiro participei do Curso “Artes Plásticas na América Latina”, ministrado pelo Prof. Frederico de Morais, o curso aconteceu na Sala Humberto Mauro no Palácio das Artes.  Conhecia algumas pessoas do Curso da Escola Guignard que eu havia começado e não terminei e nestes dias de curso em um ou dois momentos vi José Arnaldo sem vê-lo.  Só fiquei sabendo disso quando já era seu aluno e ele se se recordou de mim e eu dele. Como disse aquela velhinha que tomava conta da Igreja São Francisco de Paula, possivelmente desde que ela tinha sido ereta: “Um gambá cheira outro!” Talvez porque éramos os dois alunos mais bizarros daquele curso e, como diria o Oswald de Andrade, “Filhos confusos de confusos dramas da América Latina”. Eu confuso e o Zé Arnaldo com a mesma aparência (estilo?) que conservaria por muitos anos: barba, cabelos compridos e o indefectível macacão jeans Lee! 

 


(Zé e uma aluna – foto 1 de 1985 - do Facebook ) E naquela época toda roupa jeans além de ser importada e cara era muito rara.  Para se ter uma ideia, quando estudei no Colégio Dom Cabral em BH (ganhei uma bolsa de estudos), participei de um concurso de contos, ganhei com um poema e o prêmio que recebi foi uma calça jeans Lewis que era importada.  Então como não se recordar daquela figura. Ou melhor, daquele macacão Lee?  Teve uma outra ocasião em que quase fui seu aluno de verdade.
O SENAC de Belo Horizonte, na Rua Tupinambás, organizou de 23/11 a 27/11/81 o “Seminário sobre Arte Colonial e Imperial em Minas Gerais” e os palestrantes seriam: Ivo Porto de Menezes (Arquitetura), Galileu Reis (Patrimônio Histórico), José Arnaldo (Antônio Francisco Lisboa e sua obra), Teresio Maldonado (Arquitetura rural) e Lauro Morais (Arte e Turismo em Mariana). E, por incrível que pareça me recordo de quase todos neste evento, menos de José Arnaldo. Ou foi neste curso que o conheci?  Ou eu não fui no dia ou ele? A memória. Como confiar na memória?  Mas o que interessa é que de uma forma ou de outra já o “conhecia”. No esquecimento da memória.

 A HISTÓRIA DA ARTE DA ACADEMIA OU NA ACADEMIA: O ICHS

Seria no primeiro semestre de 1983 que eu seria aluno do Professor José Arnaldo Coêlho de Aguiar Lima, entretanto a greve geral deflagrada na UFOP paralisou e engoliu todo o semestre.
Retomamos no segundo semestre e apesar de estar achando aquele curso todo uma coisa muito esquisita, com uns professores e professoras mais esquisitos ainda (imaginem o que eles pensavam de mim...), resolvi terminar aquilo a ferro e a fogo e se necessário com muita cachaça ordinária! Já havia desistido da Escola Guignard e de muitas outras coisas e mulheres. Já estava com quase trinta anos e aquele seria o último cavalo da História que passava na minha soleira e montei e agora seguiria em frente.  Em outro alfarrábio narro o drama ingente e às vezes poéticos destes primeiros dias na academia, as aulas, os professores e colegas...Mariana e Ouro Preto. Aqui ficarei dentro do possível com as aulas de História Geral da Arte e o Zé nesse redemoinho todo no oco do mundo das minas.
Ainda guardo comigo a maioria dos planos de aulas dos professores e eles foram datilografados e reproduzidos em mimeógrafos a álcool. Que desperdício. O tempo quase os consumiu, mas hoje estão fotografados.
Em seu Plano de Curso José Arnaldo explicita seus objetivos: “Discutir as diferentes manifestação artísticas que, de alguma forma, interferem nas manifestações contemporâneas, mostrando o desenvolvimento das artes plásticas, arquitetura e música como expressões culturais do ambiente histórico, econômico, social e político de cada época.” E seu plano ia da “Antiguidade Clássica” até às “Tendências da Arte Moderna.”
Na primeira aula, após as apresentações de praxe e o reconhecimento que nós já nos conhecíamos de vista lá em BH., ele apresentou sua bibliografia, 21 títulos e sublinhou três autores e obras na ordem alfabética: 1) “Germain Bazin, História da Arte: da pré-história aos nossos dias”; 2) E. H. Gombrich, “A História da Arte” e 3) Arnold Hauser, “Historia social de la literatura y el arte”. Com o passar do tempo adquiri todos os três “manuais” (este último em português) e ainda os possuo e outras obras. Eu me considerava “meio analfabeto” em quase tudo, assim sempre que podia e contando com a condescendência de algumas pessoas (namorada- Nádia, pais -Nery e Petrina-, irmãos e amigos) sempre que podia eu comprava era o livro e ao invés de ler o capítulo recomendado, lia era a obra toda ainda que muito mal. Sem contar, um pequeno livro que nos auxiliou muito no nosso calvário da História da Arte que foi “O que é Arte” de Jorge Coli, editado em 1981.
E nunca me esqueci de três coisas destes primórdios.  A primeira delas, foi o didatismo do Professor José Arnaldo. Ele procurava explicar os termos e os conceitos como se nenhum aluno soubesse nada daquele assunto. O que não deixava de ser uma verdade!   Alguns termos ficaram na minha memória e ele os pronunciava com vigor como se quisesse que tocássemos nos elementos: “iconografia”, “retábulo”, “pictórico”, “frontispício”, “salomônica”, “atributos da Virgem Maria”.... A segunda foi a sua tentativa de nos enveredar, nos iniciar na “historiografia da História da Arte” e para isso nos solicitou que lêssemos e estudássemos o último capitulo, a “Conclusão” do livro de Germain Bazin.  Muitos colegas e eu mesmo achei gozado ler a conclusão do livro. Só depois entendi. Se era uma disciplina de “História da Arte” deveríamos conhecer ou começar a conhecer como aquela matéria foi compreendia por alguns autores e chegou até aos nossos dias.  Bazin nos cita, Vasari, von Mander, Croce, Taine, Mâle, Dvorák, Strzygowski, Riegl, Wölfflin, Faure, Focillon, Huinziga, Hegel, Panofsky dentre outros.  Foi um verdadeiro nó cerebral tantas teorias e nomes. Mas nó necessário. A terceira, foi uma observação ainda sobre o livro de Bazin: “É um dos poucos historiadores estrangeiros da arte que estudou e faz menção à arte brasileira, sobretudo à arte mineira, o barroco mineiro e ao Aleijadinho.” Páginas 283 e 284. E até hoje, no século XXI, sem exagerar, a questão permanece. A única arte brasileira lembrada e cultuada pelos estrangeiros são as coletivas, imensos e patéticos murais nacionais: o futebol e o carnaval. Sem contar a “arte de furtar”, que uns juram que foi trazida por Cabral e outros dizem que aprenderam com um tal de Maquiavel...
De alguma forma eu não era nenhum neófito em artes plásticas e História da Arte, mas apesar de ter frequentado a Fundação Escola Guignard por mais de um ano, naquela escola os mestres não estimulavam muito a teoria e a história da arte e sim a prática e mais prática. Certa vez um deles disse-me, quando lhe mostrei que estava lendo um livro de história da arte, que não era bom ser influenciado por outros artistas e suas histórias!???
Inclusive, naquele tempo de Guignard eu me recordo de uma viagem que os alunos e professores fizeram sob a chancela do Projeto Rondon, ou coisa que o valha. Fomos para Ouro Preto e munidos de nosso arsenal (papel, prancheta, tintas, lápis, pinceis, loucura etc.), passamos toda a manhã pintando e bordando e depois do almoço, ou melhor, na parte da tarde foi cada um para um boteco e enchemos o tanque. Já estava enamorado da velha Villa Rica. Viemos embora tarde da noite e até deixamos um colega para trás, o Parc – Paulo Roberto Coelho, se não me engano, da Lagoa Formosa-MG. Vida de artista é assim mesmo.
José Arnaldo também ministrava a disciplina “História da Arte no Brasil”, cujos objetivos eram: “Discutir as diferentes manifestações artísticas ocorridas no Brasil, do período Pré-Cabralino à época contemporânea...”.  Sua bibliografia nesta disciplina era mais alentada e ambiciosa, 39 títulos. Mesmo com todos estes títulos a bibliografia sobre uma História Geral da Arte no Brasil era ainda muito pobre e destacou duas obras. Uma delas, “Arte no Brasil”, obra coletiva, que havia sido editada pela Editora Abril em 1979 era provavelmente a única disponível. A outra, também coletiva e organizada por Walter Zanini, “História geral da arte no Brasil” (1983), além de rara custava muitas oitavas de ouro, mas existia um exemplar na biblioteca do Instituto.  E no varejo ele trabalhava com autores como Affonso Ávila, Pietro Maria Bardi, Carlos Lemos, Lourival Gomes Machado, Robert C. Smith e Germain Bazin. Este último com o execrado, mas muito citado “A arquitetura religiosa barroca no Brasil”, traduzido naqueles dias, em 1983. Também José Arnaldo estava sempre antenado no mercado editorial e sempre que lançavam alguma obra digna de nota ele comentava e incentivava que comprássemos. Foi o que aconteceu, com primeira tradução para o português em 1984, do clássico livro de Heinrich Wölfflin, “Conceitos Fundamentais da História da Arte”, que comprei e nunca li na íntegra e que até hoje é fundamental para o estudo do Barroco!  Mas ainda posso ler! Livro tem essa vantagem diante de muitas coisas terrenas: não perde! Além disso, nos apresentou outra obra que havia sido editada em, 1982, e que foi um dos mais discutidos livros naquele momento e que foi marco na revisão bibliográfica sobre as riquezas das Minas setecentistas, “o falso fausto”, o livro brilhante que ele nos apresentou  foi “Desclassificados do Ouro; A pobreza mineira no século XVIII” de Laura de Mello e Souza. Segundo José Arnaldo, “...foi neste ambiente de riqueza e pobreza, mais pobreza  que riqueza que os artistas barrocos executaram suas obras-primas.” Ainda tenho o livro, que o Zé nos desvelou, e no dia da apresentação leu o seguinte trecho que nos deixou inspirados: “...o barroco se utiliza da ilusão e do paradoxo, e, assim, o luxo era ostentação pura, o fausto era falso, a riqueza começava a ser pobreza e o apogeu, a decadência.” (p. 23).

A PRÁXIS DA PRÁTICA OU A TEORIA NA PRÁTICA OU O COTIDIANO
SOB AS BRUMAS E OS SINOS DA VILLA DE NOSSA SENHORA DO RIBEIRÃO DO CARMO: A ARTE DO REMORSO

Carlos Drummond de Andrade escreveu que “Toda história é remorso” e é mesmo. Pequeno ou grande, profundo ou fútil. Mas é. Ao recordar José Arnaldo eu gostaria de ter prestado mais atenção em suas aulas tanto no conteúdo quanto na forma. Mesmo acreditando que naqueles dias de névoa e ânsia eu fazia o possível. Não me recordo totalmente de suas aulas só fragmentos.  Aliás, em todas as aulas mesmo as mais desinteressantes como de economia política, didática, língua francesa e talvez a mais cruel de todas: Estrutura e Funcionamento do Ensino ou socorro Idade Média!  Tudo era importante. Hoje eu sei!
Fui da terceira turma do glorioso Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Ouro Preto. Fomos os fundadores daquilo ali!  Faltava de um tudo! Livros, fotocópias, televisão, papel, videocassete, cantina, refeitório, sexo, sem contar os professores que chegavam naquele deserto de homens e coisas básicas e caiam fora no primeiro trem ou na primeira jardineira que aparecia. Em outro alfarrábio falarei deles e delas, alguns grandes outros minúsculos.  O que não faltava era a preguiça e falta de perspectivas naquele final de ditadura militar que ainda urrava. Fraco mas urrava!
Mas o Zé Arnaldo ficou! Aquele lugar, aquelas pessoas, aquelas casas, aqueles sinos, aquelas rezas, aqueles campanários tomados e corroídos pela intempérie, aqueles anjos e querubins, aquelas neblinas pegajosas e pestilenciais às vezes...o que o detivera naquele vácuo de tempo?  Estava escrito nas águas barrentas do Ribeirão do Carmo que seu destino já estava selado naquelas brenhas frias do passado? Ou serão os seus ancestrais e os meus que vieram da Europa, da África, dos "matos dentro” e foram expulsos dali, fugiram para o oeste, Pitangui, Divinópolis, Patos de Minas, mas os umbigos dos antepassados estavam sepultados em alguma nave de alguma capela hoje demolida? E agora chamam os parentes?
Mas o Zé ficou.  Pode ser que ele tenha reclamado de alguma coisa. Não me recordo. Apesar de ter convivido uns cinco anos com ele como aluno, monitor e amigo. E depois por mais de vinte anos como ex-aluno e amigo. Entretanto convivemos pouco, mas o suficiente! Não sou muito de apegar às pessoas vivas nem aos mortos. Essa falta de paciência com os humanos, os animais e as coisas. Mas vivi como tenho vivido com as pessoas que me suportam de forma mais ou menos recíproca! Acho que nunca deixarei lembranças...e que “os mortos enterrem seus mortos” que algum dia serão esquecidos...mas enquanto ainda estão mornos, temos que recordar, materializar a recordação ainda que com palavras frias...
Recordo-me da paciência do Zé Arnaldo. Naquela época da carência quase que absoluta de tudo, dar aulas de História Geral da Arte ou da Arte Brasileira só no “cuspe e giz” era muita abnegação, ainda que fosse numa Universidade Federal.  Quando fosse falar ou ministrar aulas sobre o Barroco Mineiro era simples. Era só atravessar a rua, era só olhar para qualquer ponto cardeal, a História estava bem ali, assustadoramente te engolindo, as curvas e contracurvas, as volutas, a contrarreforma, o olhar inquisidor do pároco, as cores do Ataíde, o Cristo contrito lutando para tirar os pecados do mundo, as Nossas Senhoras e a legião dos anjos conduzindo o demônio de volta para suas profundezas. E tudo em uma ladainha de latins e querubins....beatas e beatos, frades e freiras deslizando pelas capistranas nuas ao sol...
O Zé, me recordo, pacientemente, fotografando aqueles novos livros de História da Arte, principalmente os seus, porque no ICHS, apesar dos esforços do diretor, Cônego José Geraldo Vidigal de Carvalho às vezes se parecia mais com o pagador de promessas Feliciano Mendes de Bom Jesus do Matosinhos esmolando pelos sertões para construir seu santuário, indo diuturnamente à Reitoria da UFOP em Ouro Preto, mas as necessidades não eram supridas.  Mas o Zé, continuando, fotografava e transformava aquelas estampas inéditas para nós em slides fantásticos. Sim slides, porque não tínhamos computadores, internet, nem Datashow, nem nada. Às vezes um videocassete funcionava...às vezes...
Além do Professor Lázaro Francisco da Silva, de Filosofia, que também já dobrou o Cabo Bojador (1942-2003), o Zé, apesar de às vezes ser reservado, o que era mais do que certo, foi um dos poucos que nos franqueava não só sua biblioteca e seus livros, mas mantinha sempre aberta a porta de seu gabinete naquele Kalahari que era o Departamento de História do ICHS.
O remorso não tem fim. E, outro evento me faz ter vontade de voltar ao passado, mas como já escrevi alhures, não que eu me arrependesse de algum fato do que eu vivi ou deixei de viver. Se não fossem as falhas de meu passado provavelmente não estaria escrevendo esse amontoado de coisas desconexas, ainda que seja uma homenagem ao meu irmão de jornadas inconclusas. O remorso me leva a uma localidade do passado, meu e do tempo, daquelas descritas por Cornélio Pena, que sempre cito, no seu contundente “Fronteira”: “As montanhas correm agora, lá fora, umas atrás das outras, hostis e espectrais, desertas de vontades novas que as humanizem, esquecidas já dos antigos homens lendários que as povoaram e dominaram. - Carregam nos seus dorsos poderosos as pequenas cidades decadentes, como uma doença aviltante e tenaz, que se aninhou para sempre em suas dobras. Não podendo matá-las de todo ou arrancá-las de si e vencer, elas resignam-se e as ocultam com sua vegetação escura e densa, que lhes serve de coberta, e resguardam o seu sonho imperial de ferro e ouro.” Só que Catas Altas do Mato Dentro, então distrito de Santa Bárbara, que era mais uma destas decadentes vilas do ouro, não se encontrava no dorso, nem era uma doença e mais se assemelhava a uma sujeira, ou uma desbotada “fotografia na parede”, mas não doía. Era uma sujeira linda, sublime...
Em 1982, quando fui para Mariana estudar, já conhecia quase todas as vilas do Ouro, exceto talvez S. João del Rei e Tiradentes.  Conhecia Mariana, Ouro Preto, Sabará, Pitangui, Congonhas, Santa Bárbara, Barão de Cocais, Brumal e outras que tiveram ouro, mas foram esquecidas como Paracatu... Assim, o que me impressionou em Catas Altas não foi exatamente a estagnação econômica, nem a letargia social e cultural do lugar. Nem os aspectos externos de seus templos, como a Igreja de Nossa Senhora da Conceição e suas torres de uma singularidade única, espetando o céu para que ele furasse e caíssem anjos ou alguma coisa mais poderosa que a socorresse, ela e as Capelas de Nossa Senhora do Rosário, de Santa Quitéria e a do Bonfim.
O mais espetacular e surpreendente naquele diminuto lugar de quatro templos religiosos e paradoxalmente esquecido por Deus, foi a paisagem natural que servia de cenário para aquela comunidade de seres humanos forjada para ser abrigo de caçadores de ouro e riquezas. E depois, de troco, pobreza e prostração.
Junto com o Professor eu e ele, do frontispício do templo paramos e perscrutamos nossos olhares em direção para além do adro da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, passando por uma praça nua onde jazia um pequeno chafariz em coluna, mais a baixo o espaço era rasgado pela rua onde casarios com marcas de antiga opulência serviam de contraponto com a extraordinária e conspurcada muralha de pedra de um dos braços da Serra do Caraça ao fundo que servia de gigantesco e impressionante ponto de fuga.  As casas, as igrejas, as ruas e os seres humanos pareciam minúsculos diante daquela brutal e bela estrutura de pedras. Aquela montanha talvez só se comparasse a outra que conheci mais tarde, a da Serra de Ouro Branco que também oprime e esmaga inclemente a vila do ouro do mesmo nome. O mesmo não posso dizer sobre Ouro Preto, a cidade sempre foi mais poderosa...
Passado o susto, ou melhor, a surpresa pela visão poderosa da terra compacta onde já teve ouro, volto ao remorso. Quando saí de Belo Horizonte e fui estudar no ICHS, inicialmente por cerca de um mês e meio morei no Hotel Providência em Mariana, depois devido a uma série de carências, mudei para uma pousada em Ouro Preto, a Tenda JJ.  E todos os dias letivos eu ia e vinha para Mariana.  Numa manhã de sábado (não me recordo do ano ou do mês) quando estava no Instituto encontrei-me com o Zé Arnaldo e ele disse que estava indo para Catas Altas fazer umas pesquisas na Igreja de Nossa Senhora da Conceição.  Não pensei duas vezes, não conhecia o Caraça e nem Catas Altas, apesar de por três vezes ter ido a Barão de Cocais, Brumal e Santa Bárbara via Belo Horizonte.  Fui com a roupa do corpo. A viagem foi como uma viagem ao século XIX, provavelmente passamos por caminhos onde Saint-Hilaire e outros viajantes estrangeiros também trilharam. Inclusive, o Bispo de Mariana, D. Frei José da Santíssima Trindade que esteve em Catas Altas em 1821: FREGUESIA DE NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO DE CATAS ALTAS, A 6 LÉGUAS DE MARIANA...Esta freguesia tem a felicidade de lhe caberem párocos zelosos e vigilantes, por isso o povo é dos melhores e mais chegados à Igreja que se encontram por perto da cidade. O arraial não é dos mais povoados, porém corresponde à população da freguesia. A igreja matriz está colocada em bom lugar e com boa perspectiva. Tem 7 altares e todos com muita decência, pintados e dourados, porém o principal, tendo retábulo de talha boa, ainda estava em madeira; a sacristia achou-se suficientemente provida de ornamentos festivos e para o comum, e de alfaias para os divinos ofícios.” (OLIVEIRA, R. P. ; LIMA, José. Arnaldo. Coelho. Aguiar.  Visitas Pastorais, p. 85) 
Passamos por localidades miseráveis e vimos pessoas tão bizarras e perplexas como os “catrumanos” descritos por João Guimarães Rosa, seu Grande Sertão:Veredas. E ainda tivemos de fazer baldeação não sei bem onde e como a estrada piorou, mudamos para uma “jardineira” mais ordinária do que a que nós estávamos.  Por fim chegamos àquele lugar como que numa aquarela romântica do século XIX onde a natureza era soberana e magistral.
Fomos direto para a Igreja e logo, logo, senti que eu seria inútil para o Professor, pois tenho que confessar que na noite anterior tinha ingerido aquela maldita cachaça ouro-pretana na República Tabu ou no Bar das Coxinhas. A minha ressaca era maior que aquela igreja e quase tão grande quanto aquela linda e ameaçadora montanha.
Mas antes de abandonar o Zé e a sua Igreja, ainda tive tempo de ouvir o histórico daquele templo religioso que segundo ele mais ou menos assim: “Além da riqueza, beleza e diversidade da talha dos retábulos e de toda decoração interna, este templo nos permite observar e estudar o processo de douramento das esculturas. A decadência da exploração aurífera e o êxodo da população quase deixou esta cidade em ruínas e graças à paralisação do trabalho dos artistas e artífices é possível ver, obras entalhadas totalmente terminadas e douradas, obras inacabadas sem douramentos e obras começadas. Uma verdadeira aula de escultura e arte barroca, um ateliê vivo, mas congelado no tempo.” Eu fiquei ouvindo o mestre, dentro do possível atento às suas lições. Depois ele me mostrou um crucifixo, dizendo, “Este é atribuído ao Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho”. E disse também que algumas pinturas possuem a palheta de Manoel da Costa Ataíde. E continuou, descrevendo e anotando detalhes do retábulo-mor, dos outros retábulos, das tribunas, dos púlpitos e de toda a decoração da nave e da capela-mor. Aí que vem o remorso, arranjei uma desculpa e fui para um bar que tinha na lateral direita da igreja.  E fiquei ali olhando o templo e a montanha. Quanta coisa deixei de aprender com o Professor José Arnaldo naquele dia?  (Será que aquelas anotações resistiram ao tempo?) E ele continuou todo o resto do dia dentro daquele templo.
Quando o Professor entrava em algum templo setecentista era como se estabelecesse um colóquio não com as entidades sagradas ou os mortos sepultados na nave, mas um colóquio com as obras daqueles homens que executaram seu trabalho em nome de Deus e da fé. Um colóquio profundo e pungente!
À noite quando eu ainda estava meio que de porre participamos do ensaio ou de uma apresentação de uma pequena banda na Capela de Nossa Senhora do Rosário. Depois dormimos em um casarão naquela rua principal defronte à Igreja Matriz.  Este casarão cuja planta era quase em forma de “U”, e que possuía na fachada duas janelas e quatro portas, era um verdadeiro palacete colonial, com inúmeros quartos, com varandas internas e no fundo da horta um caminho de pedras levava a uma curiosa mina d’água límpida e fresca. Também, por incrível que pareça, no casarão funcionava um posto de serviços do Banco do Estado de Minas Gerais (BEMGE). (ANEXO I) E o mais curioso é que ali tinha um estranho animal doméstico preso pelo pescoço, um macaco bugio, triste e desolado como um anjo barroco que caiu e quebrou as asas e ficou prisioneiro de homens até ao fim de seus dias na sombra daquele vulcão que nunca iria entrar em erupção. Se entrasse jorraria ouro e sangue!
No outro dia, mais ressaqueado ainda, visitamos a Capela de Santa Quitéria ou do Carmo, que tinha um frontão muito parecido com a Capela Nossa Senhora do Ó, de Sabará. Neste momento ela passava por restauração e o restaurador, muito jovem, também era estudante no ICHS, mas não me lembro do nome. 
Voltamos para Mariana pela mesma estrada poeirenta e deserta, fizemos baldeação no mesmo e triste lugar, vimos os mesmos viventes esquecidos pelas autoridades. E eu, devido à minha ressaca e a minha total inutilidade enquanto aprendiz, me sentia mais triste e desolado que aquele macaco incapaz de se livrar de sua triste sina de macaco-cão que não latia. O Zé Arnaldo não disse nada – ele era assim -, mas compreendeu o meu estado e também aceitou pois ao final das contas eu fui a passeio sem o mínimo compromisso, mas poderia ter sido diferente. Nunca mais voltei a Catas Altas, mas quem sabe algum dia?
Entretanto, o Professor José Arnaldo sabia que podia contar com aquele seu aluno mais velho que o resto dos alunos e dele mesmo.
A primeira vez que o José Arnaldo precisou das minhas serventias eu estava ali por prazer e por obrigação. Mais por prazer.
Ele precisou viajar, ele sempre ia a Belo Horizonte onde residia sua esposa Keka, sobretudo aos finais de semana. E uma amiga ou ex-colega da Faculdade de Filosofia de Belo Horizonte, não me recordo direito, e o que me recordo somente o apelido, Lili (eu acho), precisava fazer uma espécie de pesquisa de campo e um relatório sobre Turismo e História e ele perguntou se eu não poderia ciceroneá-la em alguns museus e igrejas de Ouro Preto e Mariana. Foi na hora! A visitante além de bonita, inteligente e etc., iria pagar as despesas de secos e molhados.
Começamos no sábado de manhã em Mariana depois de um breve roteiro, visitamos o Museu Arquidiocesano de Arte Sacra, a Catedral da Sé e o impressionante conjunto (apenas externamente) da praça formado pela Casa de Câmara e Cadeia e o Pelourinho, a Igreja São Francisco de Assis e Igreja Nossa Senhora do Carmo. Em cada um deles esboçava algum arrazoado histórico e ela ia anotando em um caderninho e às vezes perguntava alguma coisa que eu não sabia, mas deu tudo certo. Antes mesmo do almoço, fomos para Ouro Preto, que parecia ser o seu verdadeiro foco de interesse.
Almoçamos no Restaurante da Escola de Minas e aproveitando que estávamos na Praça Tiradentes, visitamos primeiramente o Museu de Mineralogia, no Antigo Palácio dos Governadores (só o prédio valia a visita, sobretudo do lado de fora, que monumento!), em seguida o Museu da Inconfidência (onde até hoje não me canso de visitar). E ela estava que já não aguentava de tanto falatório e minerais, santos, defuntos do passado e antiguidades. Visitamos a República Tabu, para ela ver como aquilo funcionava. Depois de uma pausa demorada no entorno da Igreja São Francisco de Assis e eu não me recordo se entramos nesta igreja ou na Igreja Nossa Senhora do Pilar... E aí a tarde e bruma caiam e me lembro é que depois fomos para a antiga rodoviária onde hoje se encontra a nova e nesta época na esquina tinha um botequim de quinta categoria e foi onde ela nos proveu dos molhados. Aí ela perdeu o ônibus e teve que ir embora no outro dia, bem cedinho eu a trouxe entre as brumas íngremes da S. Francisco de Paula... E segundo o Zé Arnaldo ela ficou satisfeita com o meu trabalho!  Foi o meu primeiro trabalho como guia turístico...
A segunda vez que fui útil, não foi tanto prazer, nem muito por obrigação, foi por dinheiro, o “vil papel”. E foi a primeira e última vez que trabalhei para a Rede Globo de Televisão. Depois eu me senti o “Bozó”, aquele personagem do Chico Anísio que falava para todo mundo que “trabalhava na Globo”. Foi um trabalho de pesquisa feito no Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana, em agosto de 1984.
Segundo José Arnaldo, a Rede Globo de Televisão de Belo Horizonte, na pessoa de um certo Yves, eu acho, estava interessada nas “Devassas dos Comissários do Santo Ofício em Minas Gerais no século XVIII”, tendo por objetivo “um caso especial” sobre a “Inquisição em Minas”, e em Mariana no Arquivo Eclesiástico tinham alguns livros destes visitadores. Assim, o Zé passou-me o roteiro, as coordenadas eu fiz a pesquisa bibliográfica (ele como sempre me emprestou os livros), elaborei um pequeno texto sobre “A visitação do Santo Ofício: Vila de São José d’El Rei”. Mas o que deu mais trabalho foi a leitura e a transcrição paleográfica de 15 páginas do “Segdº  Livro das devaças de viztª da Cap.nia  das Minas, 1737/8. Frgª  de Sancto Antº da Vª de S. Joze.” E tudo datilografado na minha maquininha Olivetti Studio 45. Que na época era meu PC, meu tablet, minha tradutora dos garranchos ilegíveis paridos do meu cérebro febril. Aliás, essa maquininha infernal foi presente da Nádia, minha prometida, comprada do dono da Pousada que a havia penhorado em troca de pernoites não pagos de algum hóspede insolvente.
O trabalho ficou legal, o Zé Arnaldo não chegou a ver a coisa pronta, só depois que eu já havia terminado e entregue em Belo Horizonte é que ele leu meio perplexo. E para variar ele achou um monte de erros, que, entretanto não comprometiam a pesquisa.  Pagaram-me o que eu pedi, Cr$ 150.000,00 (cento e cinquenta mil cruzeiros), não era muito, mas uma quantia razoável, se comparado com o aluguel mensal do quarto onde morava que era Cr$ 40.000,00 por mês. A forma que encontrei para agradecer ao Zé Arnaldo foi presenteando-o com um livro que havia sido traduzido para o português no ano anterior e que “estava na moda”, “Como se faz uma tese” de Umberto Eco. Comprei um para mim também.
O ano de 1984, eu completei 30 anos de existência e graças ao Professor José Arnaldo foi um bom ano. Além ter executado este trabalho para a “Globo”, foi o ano em que depois de passar por prova escrita e entrevista, fui aprovado para ser Monitor da Disciplina História Geral da Arte o que aconteceu também no ano seguinte.
Como monitor, tive poucos monitorados, mas li e pesquisei bastante. E sob a orientação do Professor José Arnaldo, em junho de 1984 elaborei o projeto de pesquisa, “O estatuto econômico-social do artista e artífice em Mariana; de meados do século XVIII a meados do século XIX.”  O projeto em si era bom, em minha justificativa, aliás, que o Professor elogiou, foi: “A justificativa de abordar o ‘estatuto econômico-social dos artistas e artífices de meados do século XIX’, é que as obras existentes sobre este tema são poucas e às vezes apenas abordam superficialmente estas questões. A maioria delas estudaram a importância de apenas alguns artistas e artífices, e deram um enfoque sobre suas obras, ou seja, seus conteúdos e suas formas. Estudos sobre sua inserção no processo histórico de suas épocas, sua vida em sociedade, seu estatuto econômico-social, poucas vezes foi abordado. Alguns pesquisadores o fizeram, tais como: Rodrigo José Ferreira Bretas, Mário de Andrade, Affonso Ávila, Germain Bazin, Orlandino Seitas Fernandes, Lourival Gomes Machado, Marilia  Andrés Paixão, Caio Prado Junior, Josanne Guerra Simões e Sylvio de Vasconcelos, para citar apenas alguns; mas em nenhum deles temos um trabalho específico de grande vulto. E muitos deles foram buscar em Salomão de Vasconcelos, no seu clássico ‘Ofícios mecânicos em Vila Rica durante o século XVIII’, subsídios para seus trabalhos. Assim acreditamos na existência de lacunas que pesquisadores, ou não descobriram ou consideraram irrelevantes.  À procura delas é que iremos quando nos debruçarmos sobre os documentos relativos aos séculos XVIII e XIX.”  E estou procurando até hoje.
Professor José Arnaldo leu o projeto, gostou muito. Releu e nas 17 páginas contando com a capa e a bibliografia consultada e a ser consultada com a sua letra “de forma” sempre escrita a lápis provavelmente número 2, ele fez dezenas de correções, cortes e complementações. Além de indicar nova bibliografia, esteve comigo inúmeras vezes na Casa Setecentista orientando-me como encontrar os códices e os documentos relativos aos artistas e suas obras de Mariana. E durante quase dois anos de leituras e fichamentos de livros documentos e fontes primárias e secundárias o projeto resultou em nada. Nada!  Quatro anos depois 1988, Caio C. Boschi, publicou pela Brasiliense (Tudo é História), o livro “Barroco Mineiro: Artes e Trabalho”, e esta história dos artistas e artífices voltaram na minha memória e ao terminar de ler, escrevi na última página: “O livro que eu poderia ter escrito”.
E se dependesse do Professor José Arnaldo eu teria escrito. Mas tem sempre uma frase de João Guimarães Rosa que eu gosto muito e serve de desculpas para todo preguiçoso: “...a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais em baixo, bem diverso do que em primeiro se pensou.” E isso quando não morre afogado!
Semanalmente encontrava-me com o Professor, mas muitas outras coisas me desviaram do meu curso de candidato a pesquisador. Uma delas foi o tal de M.E. (movimento estudantil). Debates estéreis foram travados entre os comunistas, os petistas e o resto. Eu e meu amigo Antônio Luís Vieira fazíamos parte do primeiro grupo. Eram reuniões, reuniões e mais reuniões,  panfletagens e discussões inúteis. E tudo acabava no Bar das Coxinhas ou em alguma república e muita cachaça e farra. Nós queríamos acabar com o regime militar e democratizar o Brasil na marra e na pinga!
Entretanto, a bem da verdade mesmo, o projeto não andou, não deslanchou e não teve fim, foi culpa minha mesmo. Eu era muito bom para ler, fichar, debater, conversar fiado, mas na hora de escrever e “amarrar  teoricamente”, era um fracasso. Meu arsenal encefálico nunca me permitiu avançar. Inclusive dois outros professores foram jogados na fogueira de minha incapacidade e leram e discutiram o projeto comigo. O primeiro foi Sidney Chalhoub, que depois foi embora. O segundo foi José Carlos Reis. Ambos gostaram do projeto mas mandaram que eu voltasse para a “prancheta”, ou seja, estude mais, pense mais...não deu! Principalmente o pensar mais! O último e que insistiu comigo até o fim foi o Professor José Arnaldo...

BIOGRAFIA NÃO AUTORIZADA E NÃO PESQUISADA

José Arnaldo Coêlho de Aguiar Lima nasceu em Divinópolis, Minas Gerais no dia 24 de fevereiro de 1956. Faleceu em Mariana no dia 10 de agosto de 2013. Era filho de Mivanda Coêlho de Aguiar Lima. Foi feliz. Agora descansa em paz!

OPUS

Não sei. Sobre a “produção bibliográfica”, sobre a escolha ou não de José Arnaldo publicar mais coisas...Não posso provar, nunca ouvi isso de sua boca, mas provavelmente ele tinha alguns ditados, máximas ou alguns provérbios secretos, todos inclusive baseados na música “Como nossos pais”, de Belchior: “Viver é melhor que publicar!”; “Ser professor é melhor que publicar!”; “Pesquisar é melhor que publicar!”; “Estudar é melhor que publicar!”; “Viajar é melhor que publicar!”; “Beber é melhor que publicar!”; “Conversar é melhor que publicar!”; “Comer é melhor que publicar!” “Amar é melhor que publicar!”; “Foder é melhor que publicar!”; “Escrever é melhor que publicar!”; “Flanar é melhor que publicar!” e o pior e lamentavelmente, ele descobriu que “Morrer é melhor que publicar!” e comprovou e foi!
José Arnaldo, se é que posso escrever isso. Escreveu, ou melhor, publicou pouco. Não me perguntem por quê!  Eu respondo por mim. Eu publiquei pouco e como teria dito o JQ, “Fi-lo porque qui-lo!”.  Escolhas inexoráveis.
Numa pesquisa sem pesquisar direito, que isso daqui é apenas uma homenagem ao meu amigo e não uma dissertação ou uma tese, arrolei algumas coisas que o José Arnaldo cismou em transformar em palavras, páginas, livros e outras coisas. O José, também possivelmente pelos mesmos motivos dos provérbios supra, não quis comprar, roubar, forjar, traficar ou adquirir outros títulos acadêmicos, ou seja “Viver é melhor que ser mestre!”; “Viver é melhor que ser doutor!” etc., etc... Escolhas...
No arrogante quesito do Produção bibliográfica-Livros publicados/organizados ou edições”, da Plataforma Lattes, o banco de dados de currículos profissionais do Ministério da Ciência e Tecnologia e CNPq., encontramos as seguintes produções postadas e atualizadas por José Arnaldo em 30/11/2012:
1. LIMA, José Arnaldo Coêlho de Aguiar. As Novenas em Mariana. Mariana: Arlindo Diorio e equipe da Sala de Ideias - Serviços Culturais LTDA, 2011. v. 1. 63p . (Em anexo 13 livros de novenas bilíngues latim/português. Páginas alumbradas)
2. OLIVEIRA, Ronald Polito; LIMA, José Arnaldo Coêlho de Aguiar. Visitas Pastorais - de Dom Frei José da Santíssima Trindade (1821 - 1825). Belo horizonte: Fundação João Pinheiro, 1998. 448p.
3. Ballstaedt, J.E. ; AVILA, A. ; XAVIER, H. ; GONTIJO, J. M. M. ; FRANCA, J. M. ; OLIVEIRA, M. R. A. ; GUSMAO, R. D. H. ; CAMPOS, A. A. ; VARGAS, J. D. ; LIMA, J. A. C. A. ; SANTANA, J. G. . Atlas dos Monumentos Históricos e Artísticos de Minas Gerais. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1981. v. 2.”

Entretanto, na não pesquisa que realizei encontrei mais algumas coisas e acredito que debaixo deste “feijão, angu e dessa couve” do Eduardo Frieiro, tem muita carne. E sem contar o que deve ter de inéditos...mas isso não interessa agora!

1981 - LIMA, José Arnaldo Coêlho de Aguiar (Coord.); FURTADO, Júnia Ferreira; SIMÕES, Josane Guerra. Ouro Preto revisitada: roteiro histórico de seus monumentos esquecidos. Belo Horizonte: UFMG, 1981.

1985 - LIMA, José Arnaldo Coêlho de Aguiar. Resenha- ÁVILA & SANTOS.  Iniciação ao barroco mineiro.  In: Barroco 13. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 1985. p. 129

1990 - LIMA, José Arnaldo Coêlho de Aguiar. Memória e patrimônio histórico. In: LPH; Revista de História, v. 2, n. 1, p. 89-90, 1991. Nos Anais do VII encontro de História da ANPUH-MG, Crise das Ideologias – Mariana, 24 a 28 de setembro de 1990.

1993 – LIMA, José Arnaldo Coêlho de Aguiar- As línguas e a subversão. In: Pé na Estrada; Mariana no Mundo e o Mundo em Mariana. Mariana, nº 19, maio de 2014, p. 3- (In memoriam)

1994 - LIMA, José Arnaldo Coêlho de Aguiar; OLIVEIRA, Ronald Polito. Os bracher. Mariana: Universidade Federal de Ouro Preto, 1994. Curadoria – Mariana – Sala Affonso Ávila -  21 de setembro a 19 de outubro de 1994. 52p.

1997 - LIMA, José Arnaldo Coêlho de Aguiar. A pintura de Elias Layon; Retrato de um artista. In: Estado de Minas, 19 de julho de 1997 – Caderno Pensar.

LIMA, José Arnaldo Coêlho de Aguiar. A capitania sublevada. In: Posto temático Inconfidência Mineira. Ouro Preto: Petrobrás. S.d. 
Encartes de informações históricas e turística do Posto Temático Inconfidência Mineira da Petrobrás que ficava na Rua Padre Rolim e foi parcialmente destruído pelo deslizamento de terras que aconteceu em 2012. No encarte além do texto principal “A capitania sublevada” constam também os seguintes: “Arte”, “Culinária”, “Literatura e Música” e “Sociedade e Fé”.

2001 - LIMA, José Arnaldo Coêlho de Aguiar. Palácio da Olaria. Manuscrito, 2001. Apud. COTTA, André Guerra. (Org.) Guia do Museu da Música de Mariana. Mariana: Fundarq, 2008.

2001 - LIMA, José Arnaldo Coêlho de Aguiar. Arquivo Histórico Monsenhor Horta: estilhaços.  I COLÓQUIO BRASILEIRO DE ARQUIVOLOGIA E EDIÇÃO MUSICAL, Mariana (MG), 18-20 jul. 2003. In: Anais. Mariana: Fundação Cultural e Educacional da Arquidiocese de Mariana, 2004. p.177-197.

2013 - LIMA, José Arnaldo Coêlho de Aguiar. Nativitate Domini, ou sic transit gloria Mundi, ou duas questões sobre a luz.  In: Barroco 20. Belo Horizonte: Centro de Pesquisas do Barroco Mineiro, 2013. p. 297-311.
Publicação póstuma, conforme a dedicação do número: “Para José Arnaldo (in memorian), companheiro e amigo, por sua especial colaboração ao estudo do Barroco Mineiro.”

PRESENÇA DE JOSÉ ARNALDO

Se o Professor José Arnaldo não publicou muitas coisas não significa que sua vida acadêmica tenha sido um marasmo total.  Pelo contrário, desde que chegou à região de Ouro Preto e Mariana no início da década de 80 participou de intensas atividades acadêmicas, culturais e sociais (sem contar as etílicas, por suposto), era uma presença constante em tudo. Na Plataforma Lattes isso pode ser plenamente comprovado, foram cursos, orientações de monografias, bancas julgadoras, além de inúmeros eventos, congressos, exposições e feiras. Sem contar as festas em Mariana no ICHS, nos bares, nas comemorações, festas litúrgicas e folclóricas. Enfim teve uma vida social, acadêmica e fraterna muito rica.
Como ele não possuía doutorado, obviamente não poderia participar de bancas examinadoras nem de mestrado nem de doutorado. Entretanto, em um bosquejo pude constatar que vários mestrandos o agradeceram de forma especial pela sua colaboração, apoio e incentivo nas pesquisas. Destaco alguns.
Públio Athayde, “As Quatro Estações: Mimeses.” (Pós-Graduação Lato Sensu, 2007),  José Arnaldo Coêlho de Aguiar Lima, pelos préstimos e empréstimos de seus saberes.”
Cristiano Souza Oliveira, “Os Membros da Ordem Terceira de São Francisco de Assis de Mariana” (Dissertação - Juiz de Fora, 2008), “O interesse pelas Ordens Terceiras surgiu em uma disciplina, ainda na graduação na UFOP,  ministrada pelo Professor José Arnaldo Coêlho de Aguiar Lima, que foi também o orientador de minha monografia de Bacharelado. Agradeço assim primeiramente a ele por ser meu primeiro mestre, e por fim por tornar-se meu amigo e grande incentivador no estudo dos Terceiros Franciscanos de Vila Rica, me ensinando como realizar um trabalho de pesquisa histórica.”
Daniel Precioso, “Legítimos Vassalos: pardos livres e forros na Vila Rica colonial (1750-1803)”, (Dissertação - Franca, 2010), “Ao professor José Arnaldo Coelho de Aguiar Lima pelo atendimento prestativo às minhas dúvidas.”
Fernando Marcelo Seabra de Oliveira Santos, “Lições de civilidade: A didática do bem viver e regras de sociabilidade em um Periódico de ouro preto (1845-1848)”, (Dissertação - São João del Rei, 2011), “Na UFOP que aprendi a ser pesquisador e docente, agradeço meus professores e funcionários... o grande amigo e exemplo o Professor José Arnaldo Coêlho de Aguiar Lima...”
 Nara Rúbia de Carvalho Cunha, “CHÃO DE PEDRAS, CÉU DE ESTRELAS: o Museu-Escola do Museu da Inconfidência, Ouro Preto, década de 1980.”, (Dissertação - Campinas, 2011), “Meus primeiros contatos com o objeto de pesquisa foram devidos à sensibilidade da amiga Gabriella Moyle e à gentileza do professor de História da Arte José Arnaldo Coelho de Aguiar Lima, que me apresentaram o Museu-Escola do Museu da Inconfidência.”
Elaine Chaves, “O Surgimento do Português Brasileiro: mudanças linguísticas e mudanças tecnológicas no Brasil, séculos 18 e 19”, (Tese – Belo Horizonte, 2013), “Gostaria de fazer um agradecimento especial ao professor, do curso de História da Universidade Federal de Ouro Preto, José Arnaldo Coêlho de Aguiar Lima (in memorian) que me propiciou acesso irrestrito ao Acervo Histórico Monsenhor Horta e delegou a mim a responsabilidade de tutorar todos os alunos do curso de Letras que se interessassem em utilizar a documentação deste Acervo em seus projetos de pesquisa, enquanto fui aluna desta instituição. Falecido poucos dias após a defesa desta tese, não foi possível entregar-lhe, como fiz com meu relatório de iniciação científica, monografia e dissertação de mestrado, uma cópia deste trabalho.”
Além disso, desde nos número 17-ANO 1993/6 e 18- ANO 1997/2000 da Revista Barroco, José Arnaldo passou a ser o Secretário da publicação, substituindo Hélio Gravatá (1910-1994), que cumpria honrosamente essa missão ao lado de Affonso Ávila (1928-2012), desde o primeiro número lançado em 1969. Nos números seguintes, 19-ANO 2001-2004 e 20- ANOS 2012-213 secretariou a revista ao lado de Cristina Ávila, filha de Affonso Ávila e Laís Corrêa de Araújo.
Como secretário da revista Barroco, de 1993-1996, no dia 21 de agosto de 1995, nas solenidades do dia “21 de abril em Ouro Preto” José Arnaldo foi quem representou e recebeu a Medalha de Honra da Inconfidência, que o Governo do Estado de Minas homenageou os 25 anos Revista Barroco.
Foto 2 Revista Barroco 17-ANO 1993/6)
Em Mariana, José Arnaldo era uma referência em tudo. Todos o conheciam, do pipoqueiro ao prefeito.  Do Bispo ao coroinha. Da empregada doméstica à primeira dama. Sem contar os artistas plásticos, pintores, escultores, músicos e poetas. Uma fauna e uma flora, imensa, dialética, criativa e fecunda como sua História. Estes artistas, de uma forma ou de outra são herdeiros de Ataíde e Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho: Alcides Ramos, Aloysyums, Álvaro, Beth, Guima, Dalva Ribeiro, Cezário, Edésio, Eduardo Campos, Zulu & Paula, Paglioto, Ladim Gamarano, Lélio, Manoel Chaves, Márcio Silva, Maysylva, Mestre Paiva, Renato R.L.J, R. Lima, Roquinho, Salvador Paixão, Tumão, Vigário, Zizi Sapateiro e Elias Layon. E tantos que vieram depois de minha época. Alguns eu conheci...
Certa feita eu estava visitando o Cemitério São Gonçalo da extinta e desconhecida Capela de São Gonçalo em Mariana e ao conversar com um vizinho que mora defronte ao logradouro que hoje é cemitério, perguntei se ele conhecia o professor José Arnaldo, pois eu havia ido à sua antiga casa, na Rua Dom Silvério e bati várias vezes e ninguém atendeu. Surpreso o morador comunicou-me que ele agora morava era na Rua Santana. E era sempre assim todos o conheciam, José Arnaldo não podia sair à rua com pressa, pois a todo instante tinha que conversar com moradores e amigos.
Sem contar que intelectuais de todo o Brasil o procuravam. Ele era o cicerone e o anfitrião oficial de pesquisadores do barroco em Mariana e região. Eu mesmo presenciei várias vezes ele conversando com professores, pesquisadores e “autoridades” do mundo das artes plásticas, música e literatura. Um deles que também era freguês contumaz das cidades de Ouro Preto e Mariana era o Affonso Ávila, que também virou aprendiz de voo com os anjos barrocos lá na casa de São Pedro (1928-2012).
Em 2006, a Secretaria de Cultura do Estado de Minas Gerais/Arquivo Público Mineiro, publicou o livro, “Fortuna Crítica de Affonso Ávila”, que me fez voltar novamente em Mariana através da máquina fabulosa da memória.  No livro me deparei com três fotos de pessoas e lugares da saudade. A primeira delas,

 
“À  mesa, em casa de José Arnaldo e Keka, em Mariana, Ronald Polito com Affonso - 1997” foto 3 (p. 84), me recordo dessa mesa na antiga casa de Zé Arnaldo, na Rua Salomão Ibrahim da Silva. Naquela época ela era mais simples, mas não menos acolhedora. Uma távola redonda como antigamente.
Nesta, “José Arnaldo, Affonso, a organista Elisa Freixo, Laís Corrêa de Araújo (esposa de Affonso) e o poeta Duda Machado, em Mariana, Sala Affonso Ávila da UFOP, 1999” foto 4(p. 299).

Aqui, “Affonso, Josanne Guerra Simões-Keka, Laís e José Arnaldo, no adro da Igreja São Francisco de Assis em Mariana, 1992.” (p. 323). Foto 5
OUTRAS PRESENÇAS

Ao acaso encontrei também a presença de José Arnaldo em uma reportagem e em um documentário sobre Ouro Preto, Igreja São Francisco de Assis e o Aleijadinho.
Na reportagem, de 2012, a terceira parte de uma série intitulada “Caminhos da Reportagem: A rota do ouro e do diamante”, conduzida pelo repórter Lucas Rodrigues e realizada pela TVBRASIL, José Arnaldo faz três intervenções sobre a Igreja São Francisco de Assis e o Aleijadinho[1].  Foto 6

O documentário, tenho que ressaltar, foi até hoje um dos mais fantásticos e belos dos inúmeros que já assisti sobre Ouro Preto, igrejas e cidades históricas e o Aleijadinho: “Arquiteturas: Igreja de São Francisco de Assis”.
Direção de Paulo Markun e Sergio Roizenblit e uma realização da SESCTV, produzido em 2013[2].
Nele José Arnaldo, como sempre, realiza seis robustas e curtas intervenções sobre a Igreja de São Francisco de Assis, irmandades religiosas e o Aleijadinho. Os outros interventores nesse prodigioso documentário foram: Carlos Alberto Maciel, Guiomar de Grammont, Rodrigo Meniconi, Rodrigo Bastos,  Marcos Hill, Márcia Chuva, Guilherme Wisnik. Foto 7
ENCONTROS E DESENCONTROS

Depois de 10 longos anos voltei a Mariana. Separação dolorosa e lancinante. Amo esta cidade. Ela e Ouro Preto. Provavelmente mais que Patos de Minas onde morei tão pouco na minha juventude e voltei depois de velho e não reconheço mais esta cidade estrangeira tomada por ruidosos e inclementes bárbaros e vândalos. Mais que  Belo Horizonte infernal, como todas as metrópoles onde morei 15 infinitos anos. E o mundo é  mesmo redondo e dá muitas voltas. Minha colação de grau foi em dezembro de 1986 e aí voltei para Patos de Minas. E como diz o ditado popular, o homem nasce, estuda, fica bobo e casa com a Nádia. Depois tem dois filhos (Caio em homenagem ao Caio Prado Júnior e Mariana em homenagem a quem mesmo? Depois viria a neta Karina). Na sequencia, morei em Uberaba. Voltei para Patos de Minas e olha só, por seis anos fui professor na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. E de quê?  História da Arte mineira e regional! E sempre que estava aflito, pedia socorro ao Zé Arnaldo ou presencial (odeio essa palavra) ou espiritual. E professor de História na Rede Municipal de Ensino de Patos de Minas, até 2016, quando me aposentei, para sorte de meus alunos (era concursado, efetivado e abestalhado, como todo funcionário público...suicidado aos poucos como disse o poeta!)
Assim, no final de 1996 apareceu a oportunidade e a ocasião propícia para que eu fosse para Mariana: “X ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA - ANPUH-MG: Minas, trezentos anos: um balanço historiográfico - 22 a 26 de julho de 1996”.
Senti-me como um muçulmano que ia cumprir a obrigação de visitar Meca ou um cristão que ia visitar Jerusalém pela primeira vez e ver o Santo Sepulcro. Só que eu não estava indo pela primeira vez, eu estava era voltando, mas era para Sodoma e Gomorra. Não que houvesse tanto pecado assim e orgias etc., é que eu não voltei ali exatamente para orar, mas para conferir alguns amigos e mestres, algumas pedras, campanários, madrugadas e odores ancestrais. Fui procurar o que não perdi.
Revi muitas pessoas seres humanos que fizeram parte do meu drama estudantil de 1982 a 1986. Hospedei-me em Passagem de Mariana e no último dia do encontro teve um sururu, digo, um sarau no Clube Marianense e eu fiquei mais tonto que um gambá e de madrugada  acabei voltando a pé nem sei como, para Passagem de Mariana.
No evento, apesar de ter feito um ótimo curso com o professor Ângelo Alves Carrara, “O espaço econômico da mineração” (me recordo porque tenho o certificado), não me lembro bem dos outros cursos e mesas redondas e aquela coisada toda.  Eu estava como que anestesiado de estar ali, naquele antigo Seminário, povoado de vozes do passado e fantasmas que estavam vivos e que às vezes falavam comigo nos corredores: “Oi Tôca é você mesmo????”. Todo o mundo estudantil da UFOP, tinha um apelido. Eu tinha três, o primeiro era Tôca  e era usado pelo pessoal do ICHS, porque eu usava uma touca horrorosa que a minha namorada Nádia tinha feito para mim e além disso eu era provavelmente um cara que tinha dormido de touca, como na música de Sérgio Sampaio, “Há quem diga que dormi de touca...”.  O outro apelido era do pessoal da República Tabu, para encher o meu saco: “Claudio Manoel da Costa”, ou seja, alguma coisa velha do século XVIII.  E o último, também do pessoal da Tabu, “Mariana”, porque eu tinha morado em Mariana.
 E num daqueles dias cheios de balanços e sacudidelas historiográficas, exausto e com a cabeça entupida de memórias e passados, fui para um restaurante na Praça da Sé, velho conhecido meu e escrevi estas palavras, num ridículo bloquinho verde fornecido pelo “X Encontro”, que na margem de cima tinha escrito “Tudo é História” e na margem de baixo à esquerda, “Mariana: 300 ano (sic) Cidade Aurora, Cidade de Minas em Minas Gerais”, entre uma cachaça e outra, entre uma cerveja e um pedaço de carne de panela e um badalar longínquo de um sino: “Estou só, novamente. Mas estou pensando. No velho Xodó. Praça da Catedral a velha ‘ebúrnea’ do Alphonsus. E estou quase igual a ele nos seus estados etílicos. Daqui, a Catedral do órgão pode ser vista com o seu frontão nem tanto ebúrneo, mas lúgubre. Mariana é fria e triste. No entanto é menos fria e mais alegre que Villa Rica. Gostaria de estar agora lá. Mas os “miasmas pestilenciais” e etílicos, seguramente me aprisionariam naquele antro por um período além do que aos das minhas possibilidades e necessidades hoje. Tenho e sinto saudades de Mariana e Caio. A Ná: A Ná? Considero que esta viagem a Mariana e a este X Encontro da ANPUH, será muito importante para mim. Revi amigos (poucos - mas sempre tive poucos amigos, apesar de amar a todos, a meu modo). Revi coisas e memórias. REVI-ME! - E os meus sonhos, anseios e projetos inconclusos, mas estão vivos! Muito vivos. Por que estou vivo. Mariana cresceu nestes últimos 10 anos, o que era de se esperar, mas se o cidadão ficasse sentado nesta mesma praça desta Leal Cidade: pouco notaria. Amo a pouca mutabilidade destas cidades (O.P. e Mariana). Minha filha, Mariana, foi uma homenagem óbvia. Mas os problemas sociais, como disse o Professor Lázaro, de uma cidade: turística, histórica, mineradora, real e universitária são inúmeros. Há geração de marginalizados e excluídos.”  E depois... “Clube marianense mais vazio que eu. Julho/1996/ Mariana.”
Destes dias de debates e estudos, talvez a única coisa que tenha valido a pena foi o meu encontro com o professor José Arnaldo e também com alguns colegas de curso, Vinícius Pantuzza e Pedro Guerra. Em poucos minutos tentamos colocar 10 anos de assunto em dia. Impossível. Marcamos de nos encontrar depois em outra hora. Mas...
Os Zés...1996...

Vinícius, Zé e Pedro War
Depois, a partir de 2001, durante estes últimos 30 anos desde que me graduei voltei a Ouro Preto inúmeras vezes ou mais. E também fui noutras cidades perdidas no setecentos da maldita fome de ouro de Virgílio ou a auri sacra fames: Diamantina, Serro, São João del Rei, Tiradentes, Congonhas, Desemboque e na olvidada Paracatu.
Como já disse, tudo servia e serve de motivos para o eterno regresso a essas plagas impuras do passado. Eu vinha como “guia turístico” e poucas vezes cobrei alguma coisa, mas também não tinha despesas. Secos & molhados e estadia era o mínimo que eu precisava. Meus conduzidos foram os mais diversos possíveis, alunos de escola pública, escolas particulares e principalmente estudantes do Centro Universitário de Patos de Minas, o UNIPAM.  Teve aluno de tudo quanto foi curso, História, Letras, Direito, Pedagogia e outros. Poucos vinham realmente preocupados com as cidades históricas e o barroco mineiro. Os adolescentes porque queriam conhecer o mundo e os adultos porque queriam esquecer do deles e descobrir outros com outras pessoas. Na maioria das vezes eu não ia com os alunos e nem voltava com eles. Estudantes dentro de ônibus de excursão são insuportáveis, barulhentos e mal educados. Os adultos (inclusive eu) bebem demais e os adolescentes comem demais aqueles salgadinhos nauseabundos. Sem contar que uma vez fui a um congresso de professores estaduais em Diamantina e a coordenadora rezou um terço dentro do ônibus antes da viagem e na volta. Pensei até que era um enterro coletivo. Cruzes!
Sempre encontrava um conhecido ou outro em Mariana ou Ouro Preto. A lista é grande prefiro citar só alguns.
Fui a vários Congressos de História e em nem todos eu fazia inscrição ou participava integralmente, sobretudo porque o congresso em si era mesmo só uma desculpa.

José e Jurandir Malerba [sobreviventes da "lama do ICHS"...

Em 2007, participei de fato do “Seminário Nacional de História da Historiografia: historiografia brasileira e modernidade.” que aconteceu no ICHS., de 01 a 03 de agosto de 2007.  Foi interessante porque além de rever alguns ex-professores e funcionários do Instituto, revi duas pessoas que foram importantes na minha época. Uma delas foi Jurandir Malerba (foto supra), pós-doutorado e autor de inúmeros livros, antigo companheiro de ICHS e farras. Aliás, foi ele, se não me engano quem fez a conferência de abertura e na ocasião teria dito mais ou menos isso: “É sempre motivo de orgulho e satisfação voltar a Mariana e ao ICHS., onde me graduei, etc., e tal, e tomei muitos porres, inclusive com o Toca que está aqui neste auditório...”.  Mais tarde doei um livro para ele de nossa autoria, e “o fé da zunha”, ainda criticou que estava era dando peso para ele carregar. O que era verdade.  Depois ele acabou fazendo o mesmo, com um peso menor e de mais qualidade e também me presenteou com um livro que ele havia traduzido, “Antimanual do mau historiador; ou como se fazer uma boa história crítica?” de Carlos Antonio Aguirre Rojas, onde fez a seguinte dedicatória: “Para o Tôca, meu grande amigo das priscas eras ichsanas. Com um grande abraço do, Jurandir Malerba. Mariana, 02/03/2007.”

 Com um roupão bem surrado, que bem poderia ter pertencido ao Conde de Assumar
Em, 2007, a outra pessoa que revi, novamente depois outros mais de 10 anos foi o Professor José Arnaldo (foto 11).  Desta vez bati em sua porta, na Rua Dom Silvério, ele estava com um roupão bem surrado, que bem poderia ter pertencido ao Conde de Assumar, bebendo um uísque que ofereceu e eu não aceitei e me arrependi depois, porque estava indo para o Seminário. Mas aí dentro de sua casa, numa sala repleta de livros e chapéus e imagens e pinturas, também dei de presente o livrão (no tamanho – que pesa de fato 1k100g e 564 páginas), o mesmo que tinha dado para o Malerba, que eu, Antônio de Oliveira Mello e Paulo Sérgio Moreira da Silva, tínhamos escrito e publicado em 2006, “Uma História de exercício da democracia; 140 anos do legislativo patense.” Ficamos de tomar umas mais tarde ou no dia seguinte. Outro desencontro.
Neste exato momento me recordei de uma coisa que fiz, lá no início dos anos 80 e que o Zé Arnaldo não gostou. Foi a primeira e última vez: chamei-o de “Bufalo Bill”.  Outra coisa que dizem que ele não gostava e não tinha: e-mail!
Em 2008, estive novamente em Ouro Preto e pensei que ia encontrar-me com o Professor José Arnaldo no “I Seminário Internacional, Administrando impérios: Portugal e Brasil nos séculos XVIII e XIX”, que aconteceu dos dias 17 a 19 de setembro de 2008, em Ouro Preto. Sobretudo porque um dos maiores brasilianistas, Anthony John R. Russell-Wood (1939-2010, também num triste 13 de agosto), iria fazer a conferência de abertura e ele foi um dos estrangeiros que mais deixou importantes estudos sobre Minas Gerais. Russell-Wood, também levou “um tijolo” para os Estados Unidos, o livro do “Legislativo Patense”...  Estava um frio infernal, se é que isso seja possível, mas ele não foi lá.  A Marileide Lázara Cassoli, minha ex-colega de graduação foi, ela e Márcia Ferro estavam lá.  Acho que da minha geração, Marileide é a que mais voltou a Ouro Preto e Mariana depois de mim.


 No Scotch & Bar que fica na Rua Dom Silvério
Em 2010, lá estava eu de volta a Mariana. Desta vez levei um grupo para Ouro Preto e depois os levei para passear no trenzinho da Vale até Mariana e fiquei por lá mesmo.  E de noite encontrei-me com o José Arnaldo no Scotch & Bar que fica na Rua Dom Silvério ao lado da Igreja Nossa Senhora do Carmo. (foto 12)  Lá sentamos juntos com uns amigos dele que estavam com seus filhos, uma filha da Hebe Rola e outras pessoas de seu convívio social.  Conversamos pouco, mas nos divertimos muito, falamos de arte, artistas e bandidos em geral. Inclusive cheguei trocar uma ou duas palavras com um filho de Celso Taveira outro ex-professor do ICHS.
No ano seguinte, 2011, ano provavelmente um dos mais importantes para José Arnaldo, não pelo fato de ele ter lançado mais um livro. Pois isso nunca foi importante para ele. Mas porque, acredito, ele tenha concluído um projeto. Um importante projeto. Eu não sabia do lançamento do livro.
Durante o dia, aquele alvissareiro dia 24 de junho de 2011, por acaso eu estava em Mariana e tinha ido ao Banco do Brasil pegar uns trocados e quem vejo na Rua Frei Durão: José Arnaldo. Ele agora havia trocado o seu macacão jeans por um chapéu panamá e estava com o aspecto de um professor de História de verdade. 


Na Rua Frei Durão 

Fotografei-o, sem que ele me visse e depois de nos encontrarmos ele me levou para uma casa de queijos e frios onde ele encomendou alguns queijos, embutidos e outras iguarias. Quando perguntei para ele se ia fazer festa e se era seu aniversário, ele exultante, como sempre, respondeu: “Hoje vou lançar um livro e você é meu convidado!”  “Tôca aparece lá no Museu da Música lá pelas 7 horas da noite.”
E eu compareci mesmo.  O auditório ficou lotado, ele fez um pequeno pronunciamento, agradeceu a Deus e ao mundo, principalmente a Deus. Autografou dezenas de livros, “As novenas em Mariana”, inclusive o meu: “Para Eduardo, eterno monitor, com os abraços do, José Arnaldo. 24 de jun./11.”.  E depois fomos consumir aquele vinho e aqueles acepipes maravilhosos naquela noite inolvidável, para todos, principalmente para ele. Despedi-me dele, sem saber que nunca mais o veria, nem vivo nem morto. Toda aquela vida pela frente. Todos aqueles sonhos e projetos. Este é o pórtico por onde todos teremos que passar. (fotos da noite de autógrafo das Novenas)






Em 2012 retornei a Mariana, queria comentar com o José Arnaldo o livro das “Novenas”. Dividido em 14 livros, só li o primeiro, porque os outros são novenas... E aí pude constatar o que já sabia, José Arnaldo escreve muito bem, li como que ouvindo ele falar, claro e pausadamente, como um professor o faria. O assunto não é o que mais gosto, mas também não desgosto ou então não teria nenhuma afinidade com as cidades barrocas e suas obras de pura fé católica.  Mas o pietismo tratado no livro não é o da religiosidade enquanto dogma, mas a religiosidade popular impregnada da forma mais pura e resignada dos católicos do povo desde o Sermão da Montanha. E, o prefácio lapidar e iluminado do Cônego José Geraldo Vidigal de Carvalho? E a dedicatória: “Para Josanne Guerra Simões, meu grande amor e dedicada companheira.”
Naquele ano, além de fazer aquele gratificante trabalho de guia, eu também iria aproveitar e revisitar uma coisa que não existia mais em Mariana, a extinta Capela de São Gonçalo que em seu entorno tinha sido um dos principais núcleos urbanos do antigo arraial de Nossa Senhora do Carmo. Lá estive, e o que restam do antigo templo onde o Bispo Dom Frei Manoel da Cruz se paramentou, segundo o “Triunfo Eucarístico”, em 1748, para tomar posse de seu Bispado, é somente a escadaria e o possível alicerce do que tinha sido a Capela.  Achei aquela base muito pequena para o templo. Mas ninguém soube me informar. 
E ao perguntar sobre a antiga capela, um morador disse que residia ali há quase trinta anos, mas não sabia de mais nada. Aproveitei e perguntei, como já me referi, se ele conhecia o Professor José Arnaldo, pois fui à sua casa na Rua Dom Silvério por duas vezes e não o encontrei. Então ele me informou que José Arnaldo havia se mudado para a Rua Santana.
E na casa de José Arnaldo, que na verdade era uma rua que dava continuidade à Rua Santana, a Rua Lucy de Moraes, fui recebido pela, Keka, apelido que, aliás, o mesmo José Arnaldo usava para sua esposa, que me falou que o José Arnaldo estava viajando.  Perguntei-lhe sobre o que o José Arnaldo estava pesquisando e ela respondeu que ele agora está no Departamento de Museologia da Universidade Federal de Ouro Preto, e que no momento pesquisava sobre o Ataíde. Deixei um abraço para ele e fui embora. Ainda tive tempo de passar pelo cemitério de Santana e bater um papo com o Alphonsus de Guimarães e ainda aproveitei, que a Capela de Santana estava aberta e corri os olhos mais uma vez naquela indescritível e bela capela-mor barroca, tão ignorada.
E no ano de 2013, naquele agosto, como disse no início desta longa homenagem, a noite ficou mais escura, fria e ameaçadoramente interminável. Mas temos que seguir. E como disse o soturno, mas confiante Atahualpa Yupanqui,




Y así, seguimos andando
            Curtidos de soledad
           Y en nosotros nuestros muertos
Pa que nadie quede atrás
...
Nos perdemos por el mundo
Nos volvemos a encontrar...






TESTAMENTO PARA ATAÍDE

José Arnaldo Coêlho de Aguiar Lima como todo ser humano foi não só uma obra prima, mas uma obra única, inigualável e inimitável. Incomparável. Mas sem saber como encerrar esta homenagem, não tenho receio de imitar, no mesmo sentido que o artista barroco, tentando não plagiar de todo, cometendo este pequeno pecado para tentar acertar nesta despedida ao amigo.
O imortal autor de “Zorba, o grego”, o escritor grego, Nikos Kazantzakis (1883-1957), não que ele precisasse, conscientemente quis prestar suas últimas contas ao pintor grego seu conterrâneo, El Greco (1541-1614), ambos nascidos na mesma cidade Heraclião, na Ilha de Creta, e fez isso em sua última obra, “Testamento para El Greco” (1957).
José Arnaldo ao participar da gravação do documentário “Sob o céu de Ataíde”[3], inconscientemente, eu considero que à maneira do imortal escritor grego, fez o seu “Testamento para Ataíde”. Não só a Ataíde, mas a todos os artistas dos setecentos e oitocentos mineiros, brasileiros antes de tudo. Todos, porque na arte das capelas e na arquitetura civil e militar, mesmo a despeito da genialidade de um ou de outro, não existia lugar para a individualidade na execução dos trabalhos. José Arnaldo, com este legado inventaria possibilidades da arte de Ataíde e nos deixa neste testamento um testemunho de uma vida inteira de pesquisas infelizmente inacabadas!
Na série de quatro vídeos espetaculares, os seguintes especialistas explicam Manoel da Costa Ataíde, pintor nascido em Mariana em 1762 e falecido na mesma cidade 1830: Adalgisa Arantes Campos, professora do Departamento de História da UFMG; Beatriz Coelho, restauradora e professora emérita da UFMG; Carlos Magno Araújo, restaurador (inclusive foi meu colega de graduação no ICHS e aluno do Zé); Ivo Porto de Meneses, professor emérito da UFMG; José Arnaldo Coêlho de Aguiar Lima, professor do DEMUL/UFOP; Luciomar Sebastião de Jesus, escultor; Públio Athayde, historiador (também foi meu colega de graduação no ICHS e aluno do Zé) e alguém que não foi identificado corretamente.
Os estudiosos da obra de Ataíde deste documentário, falam das obras que ele executou e hoje se encontram em Mariana (Sé e Rosário); Ouro Preto (Carmo, São Miguel e Almas, Museu dos Inconfidentes, Museu do Oratório e São Francisco de Assis), Santa Bárbara, Itaverava, Catas Altas, Caraça e Ouro Branco.  José Arnaldo não faz nenhuma intervenção sobre sua obra nesta cidade de Ouro Branco. As intervenções ou comentários de José Arnaldo foram feitos partindo da Igreja São Francisco de Assis de Ouro Preto ou pessoalmente nos locais onde se encontram as obras de Ataíde, assim ele esteve pessoalmente em todas as cidades dos seus comentários.


O TESTAMENTO PARA ATAÍDE: SOB O CÉU DE ATAÍDE

Da Igreja São Francisco de Assis de Ouro Preto

Transcrição[4]

Sob o céu de Ataíde - Primeiro Episódio - Bem Cultural - Parte 1

1ª Intervenção (Da Igreja São Francisco de Assis de Ouro Preto-MG). Apresentação
Fala: Provavelmente Manoel da Costa Ataíde era um homem comum, um homem comum das Minas daquele período. Alferes da cavalaria, o que significava ter um emprego fixo, e ter um salário.

2ª Intervenção (Mariana – Rua Dom Silvério).
Fala: Mariana é a cidade onde ele passa a maior parte da vida dele. Ele nasce em Mariana e morre em Mariana. Apesar de ter morado em algumas outras cidades, enquanto exercia a tarefa de pintor e mesmo sendo alferes, né? O lugar dele, a residência dele é, o ponto fixo dele é Mariana. 

3ª Intervenção (Igreja Catedral da Sé em Mariana-MG).
Fala: Estamos na Catedral Basílica de Nossa Senhora da Assunção em Mariana, na nave dessa Catedral, aonde atrás de mim existe um desses mobiliários dos mais interessantes construídos ainda no final do século XVIII. É o tapavento, que tinha uma função muito específica naquela época, que era justamente impedir que o vento entrasse e apagasse as velas acessas aqui dentro. E esse especificamente tem esse travamento belíssimo que são alguns painéis com pinturas em sanguínea da lavra provável do Manoel da Costa Ataíde. Com essas paisagens urbanas europeias que deve ter chegado aqui através de gravuras, de missais. Serviam de pano de fundo ao cenário para algumas dessas cenas sacras e que ele provavelmente recortou aquilo e usou para a decoração dessa..., desse móvel. Na nave existe ainda o altar de Nossa Senhora Aparecida que provavelmente o fundo do camarim também é de autoria dele.

4ª Intervenção (Igreja Catedral da Sé em Mariana-MG).
Fala: Estamos no batistério da Catedral Basílica de Nossa Senhora da Assunção, onde encontra-se, né? Uma das mais belas telas de Manoel da Costa Ataíde. É uma cena de São João Batista as margens de um suposto Rio Jordão, num é? Tendo ao fundo uma Jerusalém imaginada. É. Não é uma obra documentada. O que nos faz acreditar que seja uma obra de Ataíde, além de outras coisas, é justamente a tradição marianense em atribuir a ele essa pintura.

5ª Intervenção (Igreja de São Francisco de Assis – Mariana-MG)
Fala: Estamos na Capela de Nossa Senhora da Conceição da venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência. Estamos na nave, onde temos o altar de Santa Izabel, que é pintado e dourada por ele. Mais atrás, na Capela Mor, o grande altar que também é pintado e dourado por ele. Aqui nessa nave também, na entrada, debaixo do Coro, é possível vermos o lugar onde ele foi enterrado. A Campa, onde ele se encontra. Mais antiga referência ao nome do Ataíde aqui nessa capela, são justamente quando ele faz a encarnação de três imagens de Nosso Senhor Jesus Cristo, que saiam em procissões e que até hoje ornamentam os passos que são abertos durante a Semana Santa. É o Cristo da Coluna, e... o Ecce  homo, e o Cristo da Cana Verde. Na sacristia também temos dois grandes painéis que ornamentam o forro, representando o concerto celestial e uma das sagradas conversações entre São Francisco e o Nosso Senhor Jesus Cristo.

6ª Intervenção (Igreja de São Francisco de Assis – Mariana-MG)
Fala: Olha são duas cenas que nos remetem ao final da vida dos santos. Uma é a sagrada conversação e o outro é o concerto celestial. O santo quando morre, tem-se noticia, que escuta-se  pelas redondezas e pelo lugar da morte dele uma música, que não vem de lugar nenhum. Uma música que vem do Céu, então é esse concerto celestial que temos aí.

7ª Intervenção (Igreja de Nossa Senhora do Rosário – Mariana-MG)
Fala: Esta é, a Capela de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Mariana. Nela também temos obra de Manoel da Costa Ataíde, que trabalhou na capela-mor fazendo pintura e douramento dos retábulos, das tribunas, e toda pintura do forro desse espaço. É o único forro documentado dele. Existem os contratos, existem todos os recibos e também um processo cível que Manoel da Costa Ataíde move contra essa irmandade porque ela não o paga pela sua última prestação [ri] e é nessa ação que ele fala o que ele tinha feito aqui dentro. Ele escreve isso, finas tintas, finas cores, elaborada arquitetura e valente perspectiva, né? Valente pintura.
Sob o céu de Ataíde - Primeiro Episódio - Bem Cultural - Parte 2
8ª Intervenção (Igreja Matriz de Santo Antônio em Santa Bárbara – MG)
Fala: Estamos nesse momento dentro da Matriz de Santo Antônio em Santa Bárbara, Ataíde, a sua interferência se restringe a área da capela-mor, com recibos e documentação datadas de 1806/1807, aonde então ele pinta as ilhargas da capela-mor, o camarim do altar-mor, e o fundo dos nichos deste mesmo altar, o teto dessa  mesma capela-mor e inúmeros ramalhetes e florzinhas que decoram tudo isso. Mais os dois grandes painéis narrando a História do Filho Pródigo. Olha isso já é final da vida dele. A impressão que nós temos é que quando ele vem prá Santa Bárbara, Catas Altas e o Caraça, ele já tá em fim de carreira, já tá com aproximadamente seus cinquenta e tantos anos, né? O que faz com que essa pintura seja de muito melhor qualidade.

9ª Intervenção (Igreja Matriz de Santo Antônio em Itaverava – MG)
Fala: Aqui em Itaverava, na Igreja Matriz de Santo Antônio encontra-se mais um desses forros pintados por Manoel da Costa Ataíde. Provavelmente, essa pintura é aquela mais distante do seu centro de origem, mais distante, portanto de Mariana e de Ouro Preto, lugares em que sabidamente ele trabalhou e em grande proporção. Essa pintura localiza-se no forro da capela-mor. Existe aqui também uma outra pintura, no fundo de um oratório, onde hoje funciona uma capela do Santíssimo.

10ª Intervenção (Igreja de Nossa Senhora do Carmo em Ouro Preto – MG)
Fala: Estamos na sacristia da Capela da Beata Virgem Maria do Monte Carmelo em Ouro Preto, aonde temos algumas obras de autoria do Manoel da Costa Ataíde. O douramento do altar-mor, o douramento dos altares da nave, e aqui na capela-mor, o douramento da enorme pia, um enorme lavabo, da sacristia, muito bonito, num é? E no oratório que também é de primeiríssima qualidade de execução. Também é do Ataíde as pinturas, os ramalhetes e alguns emblemas encontrados nos aparadores, nos guarda pós.

11ª Intervenção (Igreja São Miguel e Almas em Ouro Preto – MG)
 Fala: Estamos numa capela da Irmandade de São Miguel e Almas, dedicada ao Senhor Bom Jesus de Matozinhos, cuja tradição é justamente representar as vias sacras. Aqui na nave nós temos duas enormes telas de Manoel da Costa Ataíde representando justamente dois desses momentos da via sacra. O momento inicial, que é a Última Ceia. E aqui essa Última Ceia é resolvida, temos rococós de muito boa qualidade e uma das últimas cenas dessa via sacra que é a cena em que Jesus é pregado a cruz.
12ª Intervenção (Da Igreja São Francisco de Assis de Ouro Preto-MG)
Fala: Não existia naquele momento em Minas Gerais e de resto no país, num é? Nenhuma escola, nenhuma instituição que pudesse estar vinculada a formação desses profissionais.

13ª Intervenção (Da Igreja São Francisco de Assis de Ouro Preto-MG
Fala: O próprio caso de Ataíde, por exemplo, eu imagino que ele aprendeu vendo, outras pessoas fazendo aquilo que depois ele veio a fazer com maior maestria.

14ª Intervenção (Igreja São Francisco de Assis em Ouro Preto-MG).
 Fala: O teto da nave da Capela de Nossa Senhora Rainha dos Anjos de Ouro Preto, é justamente essa celebração de Nossa Senhora Rainha. É uma das invocações, é um dos inúmeros títulos que ela ostenta. No momento da sua coroação de estrelas e Ataíde põem nesses anjos as representações de músicos. Todos os quadros são dele, é que é....são duas cenas do Novo Testamento. A cena do lava pés, e aqui a cena da Última Ceia. Todo o douramento, toda policromia, imitando mármore, imitando pedra,  decorativa nesse altar. São também de autoria dele.

Sob o céu de Ataíde - Segundo Episódio - Bem Cultural - Parte 1


15ª Intervenção (Da Igreja São Francisco de Assis de Ouro Preto-MG).
Fala: Manoel da Costa Ataíde como homem do seu tempo, procura fazer parte de todas as mais importantes irmandades existentes naquele lugar, naquele período. Faz parte do cotidiano deles ter essas filiações, ter essas penetrações nessas organizações religiosas. Ao mesmo tempo procurando salvar obviamente a sua alma do inferno, não é? E ao mesmo tempo buscando, me parece no caso de Ataíde, oportunidade de trabalho. Eu fico pensando, fico imaginando que Minas Gerais no século XVIII se movia muito em função da vida religiosa. Todas as festas, todos os acontecimentos de uma maneira ou de outra ou se originavam ou passavam pelas estruturas religiosas.

16ª Intervenção (Da Igreja São Francisco de Assis de Ouro Preto-MG).
Fala: A igreja é a grande patrocinadora da obra de arte. Seja ela arquitetônica, escultórica, pictórica, musical, literária, uma vez que sermões, música e a própria ornamentação era paga e era patrocinada por ela.

17ª Intervenção (Museu da Inconfidência em Ouro Preto-MG).
Fala: Estamos no Museu da Inconfidência, na sala dedicada a Manoel da Costa Ataíde, onde temos duas pinturas de cavaletes das mais importantes da lavra dele. Uma Nossa Senhora do Carmo entregando a São Simão Stock o escapulário da ordem, e uma cena de cruz as costas, que pertence a série de quadros da Paixão de Cristo que compunham uma via sacra que existia nessas cidades coloniais. São duas obras atribuídas pela tradição de Ouro Preto e Mariana. Gerações de Carmelitas ... passam essa informação de pai para filho e se mantém inalterada até hoje.

18ª Intervenção (Da Igreja São Francisco de Assis de Ouro Preto-MG).
Fala: São cores que percorrem o rococó europeu e que percorrem o rococó no Brasil de maneira geral.


19ª Intervenção (Museu do Oratório em Ouro Preto-MG).
Fala: Estamos no Museu do Oratório do Instituto Flávio Gutierrez em Ouro Preto, onde também temos duas obras atribuídas a Manoel da Costa Ataíde. Uma, uma atribuição mais antiga que é esse requintadíssimo oratório, em rocalha. Esse oratório outro, do Francisco Vieira Servas, uma atribuição mais recente. O oratório nos remete sempre à questão do altar maior, é como se houvesse a possibilidade de levar para casa aquilo que acontecia ao nível das grandes capelas e das igrejas matrizes.

20ª Intervenção (Da Igreja São Francisco de Assis de Ouro Preto-MG).
Fala: Uma outra coisa que Ataíde faz com maestria é essa arquitetura ilusória que dá sustentação aos quadros, aos medalhões centrais, as visões celestiais desses painéis.

21ª Intervenção (Igreja São Francisco de Assis em Ouro Preto-MG).
 Fala: Há um estilo Ataíde de pintar pessoas. A orelha, por exemplo, é bipartida em dois blocos, os olhos, geralmente a esclerótica é muito acentuada.

Sob o céu de Ataíde - Segundo Episódio - Bem Cultural - Parte 2


22ª Intervenção (Da Igreja São Francisco de Assis de Ouro Preto-MG).
Fala: Esses quadros centrais dessas pinturas são extraídas de gravuras contidas nesse material impresso de uso cotidiano da Igreja. Um vigário, um capelão ou mesmo uma irmandade não ia se arriscar é...a cometer por exemplo, heresias, então ao pintor daquele momento não cabe isso que a gente concebe, que a gente denomina criação não é? Ele tem diante dele uma encomenda.

23ª Intervenção (Da Igreja São Francisco de Assis de Ouro Preto-MG).
Fala: A tradição diz que ele usava seus próprios filhos e a sua própria mulher como modelo para essas Nossas Senhoras, essas Virgens, esses anjos e querubins.

24ª Intervenção (Igreja Nossa de Senhora da Conceição em Catas Altas do Mato Dentro MG).
Fala: Esta é a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição em Catas Altas do Mato Dentro. Uma dessas grandes matrizes construídas ainda na primeira metade do século XVIII, em Minas Gerais. É. A decoração do arco do cruzeiro é composta por quatro painéis, com os quatro doutores da Igreja Ocidental. Também é da autoria de Manoel da Costa Ataíde a pintura dos dois grandes anjos tocheiros que ficavam na Capela Mor e que hoje estão juntos ao Altar de São Miguel e Almas.

25 ª Intervenção (Da Igreja São Francisco de Assis de Ouro Preto-MG).
Fala: Em termos técnicos, o que se sabe, é que ele usava da têmpera para fazer todas essas pinturas, alguma muito pouca coisa em óleo caro, por ser muito caro e ser muito difícil de ser obtido naquele momento.

26ª Intervenção (Da Igreja São Francisco de Assis de Ouro Preto-MG).
Fala: Ele provavelmente usava da técnica de ampliar os desenhos e perfurar papéis. Levar esses papéis perfurados até o teto e com uma boneca de carvão, transferir o desenho para a superfície branca.

27ª Intervenção (Igreja de Nossa Senhora Mãe dos Homens em Caraça-MG).
Fala: Estamos na Capela de Nossa Senhora Mãe dos Homens, antigo Hospício localizado nas faldas do Caraça, por onde Manoel da Costa Ataíde trabalhou nos primeiros anos do século XIX. Trabalhou aqui como pintor e dourador dos retábulos e da decoração interna de uma antiga capela que aqui existia. Necessariamente nesta ordem ele faz mais dois trabalhos. O retrato do irmão Lourenço, fundador da casa, e a grande Ceia, né? Que estamos vendo agora.

Santa Ceia – 1828 - Caraça
José Eduardo de Oliveira[5]
Patos de Minas, de 14 a  20.07.2014
POSTSCRIPTUM – 2014

Em agosto de 2014, exatamente um ano depois da morte de Zé Arnaldo, voltei a Mariana. E trouxe comigo este escrito que distribui para algumas pessoas. Dentre as quais, Keka, o Carlos Alberto do Rancho, o Toninho do ICHS, um aluno do mesmo lugar, o Renato Baeta de Ouro Preto e ex-colega de ICHS (inclusive pedi que ele deixasse um exemplar com a Marisa, caso a encontrasse...), na Pousada que pertence à mãe da Guiomar de Grammont, uma para a filha da Hebe Rola e com mais uma ou duas pessoas de Mariana.
E voltei novamente na casa onde José Arnaldo morava, desta vez encontrei-me com a Keka, expressei meus tardios sentimentos e conversamos um pouco sobre algumas coisas e sobre o Zé. 
Keka falou-me que infelizmente teve que se desfazer de vários pertences de Zé Arnaldo, que tinha o hábito de guardar tudo que fizesse parte de seu cotidiano, suas aulas, suas viagens (como eu, como passagens, folders, objetos diversos etc.).  Inclusive, na porta de sua casa, no lixo, pude de relance ver um livro velho de história da arte, papeis e agendas que possivelmente não tinham nenhuma utilidade para ele e que provavelmente para ela e para ninguém, menos ainda. Mas eram preservados como uma apreensão real/irreal da memória das coisas vividas.  Conheço uma senhora que irá fazer o mesmo com a minha “síndrome de Diógenes seleta” ou um colecionismo compulsivo dos fragmentos da vida cultural.  Eufemismo para lixo.
Depois, fui ao Cemitério de Santana, que tirando a alameda principal, onde se encontra o túmulo de Alphonsus de Guimaraens (1870-1921), mais parece um sítio arqueológico de sambaqui, só que composto de um amontoado de túmulos humanos, quase um sobre os outros, marcados com cruzes, nomes e inscrições. Para visitar um túmulo, temos que pisar sobre vários e tomar cuidado para não cair em alguma vala aberta e ficar ali antes da hora...
O do Zé trazia a seguinte inscrição na placa sobre a fria lápide: “JOSÉ ARNALDO COÊLHO DE AGUIAR LIMA *24-02-1956 + 10-08-2013 -- EUGE, SERVE BONE, IN MODICO FIDELIS, INTRA IN GAUDIUM DOMINI TUI (Mateus 25,20) -- MAGISTER CARISSIME -- PAZ TECUM. Traduzindo a primeira sentença do epitáfio de uma Bíblia das Edições Paulinas, que quer dizer o seguinte: “Seu senhor disse-lhe: Está bem, servo bom e fiel, já que fôste fiel em poucas coisas, dar-te-ei a intendência de muitas; entra no gôzo de teu senhor.” As outras, “Caríssimo Mestre” e “A Paz esteja contigo”.

Depois do cemitério fui ao ICHS, quase outro cemitério naquela manhã tão esquisita e confusa. Lá encontrei-me novamente com o Toninho, entreguei-lhe este escrito, trocamos algumas palavras. E como não havia ainda conversado sobre a morte do Zé Arnaldo, ele disse-me que nos seus últimos dias, José Arnaldo não estava muito satisfeito com a sua transferência para o Departamento de Museologia da Universidade Federal de Ouro Preto. Eu tinha pensado exatamente o contrário.  Mas agora quem saberá?


 P.S – 2015

Isso que estou escrevendo e parando por aqui, não é um diário, nem outra coisa qualquer. Nem lamentos, nem uma cruz que carrego.  Deixei há muito tempo de rezar e acreditar em ressureição e milagres.  Apenas escrevo, mal, mas escrevo.
Em julho de 2015, voltei a Mariana e Ouro Preto e de troco estive em Sabará. Belo Horizonte é só uma pinguela no roteiro, prestes a despencar no vazio. Amo estas lacunas depredadas no tempo e neste espaço tão barulhentos e sujos. Amo estas cidades que inconscientemente e cruelmente nos lembram o que fomos, o que somos e o que seremos: escombros. E como disse o velho B.B., “Destas cidades só restará o que passa através delas, o vento”.
Fui ao Rancho, o Carlos, disse que não leu esta coisa. “Muito grande”.  Ele não foi sincero, queria dizer: “Muito chato e sem pé e sem cabeça”. Compreendi, pois ali a comida e a bebidas, são as melhores desde antes de Salvador Furtado de Mendonça acender uma fogueira à margens do Ribeirão do Carmo.  Não me encontrei com ninguém conhecido do passado do ICHS. Só com o que restam dos campanários, dos frontispícios e dos seixos das ruas esburacadas, sobretudo de Mariana. Em Ouro Preto, entrei pela primeira vez na Igreja Nossa Senhora do Rosário, pois ela sempre esteve fechada. Tinha até um casal patense lá! Prefiro não comentar para não estragar a magia que aquele templo desencadeou em mim.
De noite, voltei ao Bar das Coxinhas, o Bar Barroco, só que agora na Barra. O Antônio estava lá, as coxinhas e os seres humanos em regozijo etílico também, como se o mundo fosse acabar naquele instante. Mas não acabou só criou um outro de ressacas e mais ressacas. Noutro dia, ou melhor, outra noite, estive no Chopp Real, na curva da virada, entre a Praça Tiradentes, o Palácio dos Governadores e o caminho infinito para Mariana. Neste bar, o André e sua banda, faz o possível e o impossível para nos servir bem e consegue!
Depois, em minhas andanças em Mariana, perto do Museu da Música, antigo Palácio dos Bispos, conversando com um escultor, Mestre Paiva, ao falar que eu conhecia José Arnaldo, ele ficou emocionado, dizendo que eles foram amigos e que gostava muito dele. Disse também que o Zé não havia gostado de ter saído de Mariana para trabalhar...
Mas, como escreveu o Karl M.:  “Que os mortos enterrem seus mortos e os chorem!”

Patos de Minas - 29.07.15

P.S – 2016

Estive novamente em Mariana em junho. Lá refiz os mesmo roteiros, quer dizer os mesmos bares e as mesmas igrejas, ruas e corrubianas de Ouro Preto e  Mariana. Dos conhecidos do ICHS, além do Toninho, encontrei-me com Hebe Rola.
Estive também em Bento Rodrigues, (16.06) prefiro não descrever o indescritível.
Voltei em outubro, mas não sabia, que novas ruinas e escombros estavam em gestação, como diria o velho Santo Agostinho... “meu coração que se apegara a ela, despedaçado e ferido deixou um rasto de sangue. Mas minha ferida, gerada pela separação anterior, não sarava: ao contrário, depois da inflamação e de uma dor mais intensa, gangrenava, e doía de maneira mais fria, por assim dizer, porém mais desesperada..." in: Confessiones, VI. XV, 25
Patos de Minas – 20.06.16

P.S – 2017

Neste ano, ciceroneado mais uma vez, por Manuel Bandeira, estive novamente em Mariana e Ouro Preto, em janeiro e junho. Um novo e inquietante mundo barroco foi talhado, não no cedro e nem na esteatita, mas no bronze de carne humana. Como a herma da casa do Ouvidor...Uma imaginária grotesca e triste. Mas sobrevivi às ladeiras, aos anjos e demônios e a mim mesmo. A cidade estava ali agora contemplada sem concorrência e sem ilusões...
Patos de Minas, 18.06.17

P.S – 2018
Em fins de janeiro deste ano, voltei em Mariana e Ouro Preto, hospedei-me no Brumas Hostel, e apesar do veranico infernal, foram três dias de uma peregrinação a inúmeros lugares sagrados e profanos, inclusive a Congonhas, onde Ataíde também esteve, e apesar da descrença e da nostalgia, não pelo passado, mas pelo presente como se eu estivesse ali com uma cruz incandescente num calvário sob o olhar misericordioso e inútil daquele Cristo de cedro, pelas cruéis advertências daqueles profetas de esteatita e  pela memória de alguém que trilhou também aquele sacro monte de pedras e madeira esculpida, a mesma paixão, sem morte e sem ressureição, depositei um ex-voto paradoxalmente para o esquecimento, envolto em uma bruma ancestral, sufocante e invisível, ainda que resignada.  Resignada? [ANEXO II]
E depois, ao acaso adquiri na Estante Virtual a revista Barroco 20 – ano 2012-2013. A obra chegou no dia 07.02.18. Diante da descoberta da publicação póstuma do texto de José Arnaldo, “In Nativitate Domini, ou sic transit gloria Mundi, ou duas questões sobre a luz., nesta revista senti-me na obrigação de fazer esta citação neste opúsculo...

Patos de Minas, 07.02.18
The end?

ANEXO I
FOTO: FÁTIMA PINTO COELHO. In: Catas Altas do Matto Dentro Minas Gerais. Rio de Janeiro: Barléu Edições, 2018. P. 22

ANEXO II
Poderia ter sido em sonho, mas não foi. Ou foi? Você silenciosamente se afastou e penetrou pungida, mas calma e determinada naquela “sala dos milagres” do Santuário de Senhor Bom Jesus de Matosinhos em Congonhas. Estava frio, mas podia-se vislumbrar do adro junto aos profetas onde me encontrava perplexo, o calor que exalava de seu corpo, de sua aura e de sua fé quando se dirigia para o oratório dos que ainda tinham esperanças. Qual fé? A verdadeira de quem acredita que uma oração pura e pia irá se transformar em um milagre? Ou a fé que você transportou por quilômetros porque sua amada mãe e você se encontravam aflitas por causa de seu irmão e como ela não pode vir, você trouxe e depositaria naquela sala dos desesperançados e desgraçados,  um pedido de graça, um voto e um milagre? Aquele nicho sagrado comprovava através dos inúmeros ex-votos os milagres e as graças concedidas aos enfermos, aos descrentes que creram, aos que pediram e foram atendidos.  Naquele momento, diante de seu gesto inusitado e sublime, eu mesmo um descrente antigo, quase acreditei que existia a possibilidade de algum milagre. Quase me converti, ou, de alguma forma por alguns instantes, fui iluminado com a sua atitude que trouxe em segredo...que promessa fez?  Foi o que a sua mãe pediu? Ou foi você mesma? (Nunca perguntei, eu acho) E o que mais dilacera o meu peito, agora, hoje, neste momento é que naqueles dias, já teria ocorrido neste seu coraçãozinho atormentado outra conversão, outras conversões?  Ou não? E o pior de tudo, seja lá que pedido ou que graça pediu, ainda não foi atendida! Será? ... Cada vez se torna mais espessa a corrubiana de minha existência...e não estou conseguindo discernir as coisas do passado e do presente. Quem sabe eu precise também voltar lá e implorar ao Senhor Bom Jesus que pelo menos me faça esquecer. Esta seria paradoxalmente a minha súplica: esquecer. A minha aflição, a minha angústia, a minha doença: a memória do que aconteceu, como aconteceu, porque aconteceu. Mesmo sabendo que aqueles ex-votos daquela sala foram feitos para lembrar e agradecer um milagre e não para esquecer. E que ex-voto eu traria depois se houvesse o milagre? Talvez esse seja um milagre impossível, o maior de todos os milagres - te esquecer - e eu estaria redimido e salvo. Um coração esculpido ou pintado? Requiem aeternam dona eis...
Sala dos Milagres e Basílica...


[3] Programa Bem Cultural - "Sob o céu de Ataíde", realização REDE MINAS, 2012.: http://www.redeminas.tv/
[4] Transcrição A.R.A.E.X.M.N.P.X.+JEO
[5] Licenciado em História pela UFOP  - Universidade Federal de  Ouro Preto  (1986). canama54@gmail.com

9 comentários:

  1. Obrigada por tanta preciosidade em um texto! Fiquei realmente feliz com a leitura e me aqueceu o coração com as lembranças do Zé.

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    1. As melhores coisas de nosso passado, além é claro de tê-lo vivido intensamente, é nos recordarmos das pessoas que fizeram parte dele. obrigado.

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    1. As melhores coisas de nosso passado, além é claro de tê-lo vivido intensamente, é nos recordarmos das pessoas que fizeram parte dele. mesmo que algumas pessoas nos esqueçam... obrigado.

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  3. Minha maior lição do Zé Arnaldo não foi dentro da sala de aula. Sou aluno da turma 08.2 de História da UFOP. Tive o prazer de conhecê-lo e me sentir entre um dos seus preferidos (porque no final ele tinha o dom de fazer com que todos assim se sentissem, incrível). Quando entrei na papelaria para comprar uma caneta ou algo do tipo, levei um imenso tapa na nuca. Eu tinha uns cento e dez quilos e 1,90 de altura. Virei como um urso, mas me desfiz num sorriso quando vi que era o professor "Ô, Zé! Que susto!". O olhar dele não era doce, tinha um quê de indignado: "Ô, caboclin, quando vc entra num lugar tem que dar um bom dia, um boa tarde ou boa noite e cumprimentar todo mundo, inclusive quem te atende, porque ninguém é obrigado a te tratar bem só porque é você quem está pagando, não". Eu entendi. Ele logo me fez um sorriso e me abraçou pelo ombro. Eu entendi, Zé. Eu entendi.

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    1. As melhores coisas de nosso passado, além é claro de tê-lo vivido intensamente, é nos recordarmos das pessoas que fizeram parte dele. obrigado.

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  4. Haha, já havia esquecido da história de meu "esquecimento" em Ouro Preto. Muito bom, Eduardo! Texto para degustar devagarinho. Abração!

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    1. As melhores coisas de nosso passado, além é claro de tê-lo vivido intensamente, é nos recordarmos das pessoas que fizeram parte dele. obrigado.

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  5. Meu amigo, eu reconheço que não consegui ler dois parágrafos sem vir as lágrimas.
    Obrigado. A cada dia vou degustar um pouco de seu texto sobre uma das pessoas mais incríveis que tive ao meu lado.
    Obrigado.

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