terça-feira, 2 de agosto de 2022

O pior lance

 

O pior lance

 

“procuras alguém que seja obscuro e mínimo,

 Que possa de novo te apresentar a ti mesmo” – Murilo Mendes

 

“onde estará a rainha que a lucidez escondeu?” – Milton nascimento

 

Eu que pensava que já tinha conhecido todo tipo de mulher. Apesar de ter conhecido tão poucas. Conhecido no sentido de conversar, olhar, e algumas vezes tocar. Não no íntimo, nas entranhas das vísceras sexuais ou nos lugares molhados e lúbricos ou nas epidermes ebúrneas ou ebanistas e atrativas. Muito mais em conversas agradáveis o que é também muito bom. Porque ninguém conhece o outro, ou a outra, na verdade ninguém conhece a si mesmo. Quantas ilusões desfeitas diante de espelhos. A culpa é sempre deles.

Mas as coisas entre homens e mulheres, mesmo sendo entre mulheres jovens e homens velhos não são simples. A história de cada um sempre transparece em cada palavra, em cada gesto. As palavras sempre estão impregnadas de passados. E os passados trazem sentimentos. Muitos. Muitos, até demais.

Alguns sentimentos que emergem das memórias nem sempre são bons. O consolo é que mesmo os bons que porventura existam, estão no passado.

Outro dia mesmo, uma mulher atravessou em meu mísero destino. Mísero não quer dizer que seja ruim ou digno de dó, apenas inevitável.  Se tivéssemos alguma forma de prever nosso futuro ou ler alguma mão, ainda que macia, branca e aromática, de qualquer forma, dependendo da coisa, iríamos mentir ou no caso, mudar o futuro, ou nem sair de casa. Mas isso não existe. Mas uma mulher branca e com os olhos que podem mudar de cor e podem mudar as cores das flores, sobretudo orquídeas e rosas, não é uma coisa que se vê nas redes sociais e nem se compra na Amazon ou no Mercado Livre. E nem é encontrada em nenhum puteiro do Jardim Paulistano. É uma coisa que se pode inicialmente considerar raro. E curioso.  Como algumas pedras, que apesar de não serem preciosas, valem mais que diamantes ou esmeraldas... Além disso rodeada por cães, gatos e augúrios a maioria maus. Ou bons? E por mim, não sei imaginar o que sentimentos ou o que ela pensava ou pensou sobre mim.

Pois bem.  Era uma tarde fria de julho, eu acho. E eu fui convidado por essa mulher dos olhos descoloridos e profundos como uma vereda das Geraes, ou a morte, mas muito mais, a entrar em sua casa.  Ou melhor, em seu mundo.  Aliás, já conhecia essa mulher, sabia o nome e mais nada.

Nesse momento, lembrei de uma trova:

 

Ei-lo de todos os casos, o mais estranho do mundo

Como nuns olhos tão rasos, pode haver um olhar tão profundo?

 

E depois cruéis. Mas como disse o açougueiro, vamos por partes.

A casa era nova e ela não era mais uma adolescente, passava dos quarenta, mas tinha o frescor e o corpo de uma adolescente febril. E uma pele, uma epiderme, tão branca que a princípio pensei que ela nunca tinha saído de casa durante o dia em toda sua vida. E o cabelo fino, espesso e negro como uma noite sem Lua ou o seu próprio passado.  Se eu fosse mais supersticioso, acreditaria que ela era uma vampira. Uma bruxa. Ou coisa pior.  Um amigo, havia dito para ela que eu me interessava por coisa antigas, não ela, mas as coisas que estavam em sua casa, por toda ela, em três ambientes e andares.

No geral, que depois descreverei em detalhes, eram louças em forma de pratos, sopeiras, xícaras pires e outros utensílios domésticos, retratos, coisas de fazendas antigas, como um pilão, que nunca vi igual, com tampa, e uma infinidade de pequenas coisas de pedra, madeira, metal. De fato, um verdadeiro museu, se visto como um monte de antiguidades. Para meu desapontamento, não vi um livro sequer, mas não estava ali para ver o que queria ver. Ela me mostrou o que pode e vi o que foi possível naquele primeiro instante. Depois voltei uma ou duas vezes, inclusive, tinha umas coisas em casa que acabei doando para aquele lugar que parecia ser o lugar certo onde deveriam ficar. Sem contar alguns nichos onde objetos religiosos e de algum culto que se espalhavam pela casa como se fosse uma via sacra ou um lugar de peregrinações pagãs ou de rituais diversos, indígenas, africanos, cristãs e orientais.  Tinha muita coisa valiosa, mas muitas quinquilharias, coisas da China e coisas do xing-ling. Inclusive reproduções de pintores, reproduções baratas. Mas não sou um bom avaliador.  A presença dela me perturbava de alguma forma, como se ela fosse a única coisa valiosa ali.  Ou falsa.  Mas repito, fui convidado para apreciar  e  não avaliar  o que ela achava valioso, tesouros de família e de cabeça.  Sem contar que ela se considerava uma loba. Umas predadora, portanto. Perigosa? Muito provavelmente.

Essa mulher misteriosa, mas de fala mansa e doce, não parecia perigosa ou não tinha nenhuma vontade de transmitir uma doutrinação qualquer. Ela apenas era ela, quase uma entidade, só que real, descobri isso, ou melhor, constatei, porque ela tinha um aroma, não dela, mas de algum perfume suave e sedutor. Talvez fosse dela ou da casa, ou dos gatos ou dos cães ou do seu passado, ou daquela trenheira toda.  Difícil saber.

Depois doei para ela um filme que eu tinha repetido, “O melhor lance” [the best offer], porque de alguma forma pensei nela e no filme que tinha assistido há algum tempo – bobeira comparar a ficção com a realidade..., nem tanto pela história, de um velho doido que conhece uma jovem maluca em meio a coisas antigas, mas pela quantidade de coisas antigas que tem preços. Tudo tem um preço, ou não? Inclusive a alma. Ou o corpo. Ou uma mistura de rum com Coca, depois das 24 horas e sem gelo. E sem tesão...Apesar dos corpos expostos e dos medos escondidos.

 

E aqui a História acaba.  Por enquanto

 

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